Educação inclusiva: uma
contribuição da história da psicologia
Ao longo da história da Psicologia a educação inclusiva vem se
mostrando como um desafio. Este pode ser traduzido como uma mescla de novas
perspectivas e métodos com as mais diversas críticas aos resultados obtidos. O
trabalho da psicóloga e educadora Helena Antipoff com educação especial mostra
como estas duas possibilidades podem estar presentes.
Refletir sobre a educação inclusiva implica pensar nas relações
entre psicologia, práticas educacionais e educação especial, e,
consequentemente, no papel social do psicólogo. Segundo Campos (1996), a
história da ciência psicológica vem nos mostrando que a atuação do psicólogo,
seja na educação, seja em outra área possível, jamais é neutra e responde a
demandas que se inscrevem em um contexto político, econômico, social e
cultural, estando sujeita a suas especificidades. Portanto, o resultado da
intervenção do psicólogo pode ser bastante diverso das suas propostas iniciais,
e, conforme denuncia Patto (1984), pode vir a legitimar práticas sociais que
levam aos mais diversos tipos de discriminação.
Tal denúncia feita por Patto aponta para uma característica que,
segundo Figueiredo (1995), marca a história da psicologia científica desde o
seu surgimento no final do século XIX e que, conforme outros autores como
Campos (1996), Bueno (1993) e Velho, este último citado por Wanderley (1999),
vem se mantendo ao longo da história da disciplina, manifestando-se em muitas
de suas diferentes propostas: a contradição entre o reconhecimento da
subjetividade e das diferenças individuais, e, ao mesmo tempo, um movimento de
controle destas diferenças através da construção de padrões de normalização. O
resultado seria exatamente a geração de mecanismos de discriminação daqueles
que não se enquadram nos padrões de normalidade.
Por estar relacionada exatamente com a diferença, podemos dizer
que a atuação do psicólogo na área da educação do excepcional vem estando
sujeita a tais contradições, e, conforme esperado, a muitas críticas. É a
história, mais uma vez, que vem nos mostrar que o convívio com estas condições
contraditórias constitui ora o grande desafio, ora a grande limitação do
psicólogo que se dedica a esta área.
Estudos referentes à relação entre psicologia e ideologia, como os
de Patto (1984), e referentes à história da educação especial no Brasil, como
os de Bueno (1993), tendem a considerar propostas como estas de Antipoff a
partir de suas conseqüências práticas: a segregação e a exclusão das crianças
excepcionais dos sistemas públicos de ensino.
Propomos aqui uma análise um pouco mais ampla das propostas de
Antipoff - uma análise que aponte justamente as contradições que as permearam e
que permita que se diferencie o contexto e os objetivos destas propostas de seu
(inesperado) resultado segregacionista. Esta análise se fundamenta em uma
leitura das Obras Completas de Helena Antipoff, publicadas pelo Centro de
Documentação e Pesquisa Helena Antipoff em 1992. Estaremos assim, apresentando
uma situação a que também hoje estão sujeitos os psicólogos que trabalham na
educação do excepcional, seja na escola pública, seja em escolas especiais.
Helena Antipoff
(1892-1974) nasceu na Rússia, mudando-se para a França em 1909. Fez sua
formação superior na própria França, onde estagiou no Laboratório de Binet e
Simon. Em seguida foi para a Suíça, estudando e trabalhando no Instituto Jean
Jacques Rousseau, um dos principais centros propagadores das idéias da Escola
Nova da Europa do início do século XX - o movimento das Escolas Novas
constituiu-se a partir do final do século XIX e se caracterizou por novas
propostas pedagógicas que enfatizavam a democracia nas relações escolares, uma
educação que respeitasse as diferenças individuais, as aptidões e os interesses
das crianças. Antipoff especializou-se, portanto, em Psicologia da Educação. Por
ocasião da Primeira Guerra Mundial, voltou à Rússia, onde viu eclodir a Revolução de 1917. Neste país
permaneceu até o ano de 1924, engajando-se num trabalho de triagem e reeducação
das crianças órfãs e abandonadas em decorrência dos conflitos militares. De
volta a Genebra, voltou a se integrar à equipe do Instituto Jean Jacques
Rousseau (Antipoff, 1975).
Antipoff permaneceu em Genebra até 1929, quando veio ao Brasil a
convite do governo de Minas Gerais para trabalhar na reforma do ensino do
estado. Dentre as múltiplas propostas vinculadas a esta reforma, estava a
formação das professoras das escolas públicas em psicologia da criança e nos
novos métodos divulgados pelo movimento das Escolas Novas que estavam em voga
na Europa e nos Estados Unidos. Para este fim, algumas professoras foram
enviadas para fazer cursos nos Estados Unidos, enquanto professores
estrangeiros foram convidados para ministrar cursos para as professoras que
aqui permaneceram. Foi criada em Belo Horizonte a Escola de Aperfeiçoamento de Professoras
e Antipoff foi convidada para aí dar aulas de psicologia da infância e ajudar
na implantação da reforma nas escolas públicas mineiras.
Uma das primeiras atividades na qual Antipoff se envolveu em Minas
Gerais foi a homogeneização das classes das escolas públicas. Esta proposta
deve ser considerada no contexto em que surgiu: o ideário escolanovista -
separadas em classes homogêneas, as crianças receberiam uma educação orientada
por seus interesses individuais e sob medida para o melhor desenvolvimento de
suas capacidades. Foi em meio a esta atividade de separar as crianças segundo
seus interesses e aptidões individuais que Antipoff se deparou pela primeira
vez no Brasil com a causa das crianças excepcionais, causa esta que abraçaria
pelo resto da vida e que traria a marca da contradição que anteriormente
mencionamos.
A partir deste momento inicial de descoberta de um grande número
de crianças que acabavam por ficar excluídas do sistema público de ensino, suas
propostas em educação especial podem ser divididas em dois momentos bastante
específicos: a atuação em prol das classes especiais nas escolas públicas de
Minas Gerais e, depois, sua atuação na educação dos excepcionais na Fazenda do
Rosário.
Aqui é importante ressaltar que apesar das diferenças e
contradições que marcaram estes dois momentos de sua obra e dos resultados de
suas intervenções, em ambos os momentos, Antipoff pensava na inclusão dos
excepcionais, seja em um sistema público de ensino, seja na sociedade.
Antipoff no processo de homogeneização das classes das escolas
públicas percebeu que havia um grande contingente de crianças portadoras dos
mais diversos graus e tipos de necessidades especiais colocadas em classes
comuns. Os professores, segundo sua observação, não possuíam qualquer preparação
ou mesmo interesse para promover meios para a educação destas crianças. Assim,
deixadas à parte do andamento da turma como um todo, seu destino era a múltipla
repetição de ano, até a desistência dos estudos.
Estando previsto nas leis do ensino a existência das classes
especiais nas escolas públicas, Antipoff, atuando junto às professoras alunas
da Escola de Aperfeiçoamento, tentou fazer com que funcionassem. Programou a
seleção e distribuição dos alunos de acordo com suas necessidades e com seu grau
de desenvolvimento físico e mental. Enfatizou a necessidade de turmas pequenas,
de um ensino individualizado, de um ambiente adequado, com material didático
disponível e professoras bem preparadas.
Considerava-se preciso dar a cada um uma educação que permitisse
seu máximo desenvolvimento. A regra era válida também para os portadores de
necessidades especiais. Esta era não só a proposta da Escola Nova, mas também
da Declaração de Genebra, uma declaração dos direitos das crianças que foi
promulgada após o término da Primeira Guerra Mundial e que Antipoff, em sua
experiência no Instituo Jean Jacques Rousseau aprendeu a tomar como fundamento
de sua prática (Lourenço, 1998).
Por outro lado,
estava embutida nestas mesmas propostas uma visão organicista da excepcionalidade.
Havia a crença em que, através da educação, dos exercícios de ortopedia mental incluídos nas atividades escolares - exercícios lúdicos para o treino e
a melhoria das capacidades mentais como atenção, memória etc. - estas
crianças poderiam ser curadas de seus desvios. A
educação era então vista como um meio de evitar que a anormalidade trouxesse
influências nocivas para a sociedade, conforme observa Aun (1994).
Aí podemos apontar uma contradição - uma ideia democrática, de uma
escola pública para todas as crianças, atendendo às suas necessidades e visando
seu máximo desenvolvimento em contraposição à ideia de excepcionalidade como um
problema a ser sanado, uma doença a ser curada.
Ainda segundo Aun (1994), o resultado destas propostas não foi
outro senão a segregação das crianças excepcionais, o que se deu em vários
níveis. Não só na separação das crianças em classes diferentes, mas no pouco
interesse que estas classes despertaram nas professoras, o que implicou no não
atendimento das propostas de uma educação especial - exatamente o oposto do
esperado.
A própria Antipoff percebeu que a escola pública e a Escola de
Aperfeiçoamento pouco vinham conseguindo fazer pela infância excepcional e em
1932 criou a Sociedade Pestalozzi de Belo Horizonte. Esta foi uma alternativa
para angariar a assistência necessária à complementação do treinamento das
professoras no ensino do excepcional, do diagnóstico psicológico e do atendimento
clínico oferecidos no Laboratório de Psicologia da Escola de Aperfeiçoamento
Pedagógico.
Com o crescimento do número de associados e da atuação da
Sociedade Pestalozzi ao longo das décadas de 30 e 40, foram aumentando os
serviços prestados às crianças das classes especiais visando o diagnóstico
psicológico e físico, novas propostas educacionais, tratamento médico e
pesquisas para a compreensão científica da excepcionalidade.
Aos poucos, à medida que aumentava seu contato com as crianças
excepcionais, a concepção organicista da excepcionalidade que Antipoff adotava
foi sendo transformada em uma visão mais abrangente. Segundo Aun(1994),
deixando de enfatizar a necessidade de cura de uma deficiência ou de prevenção
de suas influências negativas para o futuro desenvolvimento da sociedade, o
cerne das suas intervenções passou a ser o meio físico e social no qual a
criança estava inserida. Na prática, esta proposta tão diversa da anterior
atingiu o auge na Fazenda do Rosário, marcando o que podemos considerar um
segundo momento da atuação de Antipoff em educação especial.
Enfatizando o papel do meio ambiente na produção da
excepcionalidade e na forma de com ela lidar, de acordo com Antipoff (1992), a
cidade não seria o local mais indicado para a educação das crianças
excepcionais. Em suas palavras:
Escolas para excepcionais devem ser localizadas fora das cidades.
O local natural é o campo. Espaços mais largos permitem
movimentos mais amplos. Os ritmos da vida são ali mais regulares: o sol, melhor que o relógio, e os sinos marcam as horas, convidando ao trabalho e ao
sono.(...) A estética do ambiente é o fundo no qual se perfilarão as ações dos
adolescentes. Esses, rapidamente, eles mesmos, ou com o auxílio dos educadores,
procurarão a harmonia, fugindo do chocante visível e da cacofonia das
discordâncias. E, assim, paulatinamente, se aproximam das regras da vida social
e moral. (p.149-150).
Em 1940 parte da Sociedade Pestalozzi foi transferida para o
município de Ibirité, localizado a pouco mais de 20 km de Belo Horizonte - aí
fora comprada, com a verba angariada pela própria Sociedade Pestalozzi, a
Fazenda do Rosário. Foi aberta na Fazenda do Rosário uma escola, com vagas para
crianças e adolescentes excepcionais que não conseguiam se adaptar às escolas
públicas ou por elas ser aceitos.
O conceito de
excepcionalidade adotado por Antipoff (1962) foi ampliado. A educação especial passou a ser endereçada a crianças e adolescentes que se desviam acentuadamente para cima ou para
baixo da norma de seu grupo em relação a uma ou a várias
características mentais, físicas ou sociais, ou qualquer destas de forma a
criar um problema essencial com referência à sua educação, desenvolvimento e
ajustamento ao meio social.(p.10).
Funcionando no modelo construtivista, a escola oferecia diversas
atividades, onde a criança podia, no contato com a natureza e com o
instrumental disponível, sob a orientação de professoras devidamente treinadas,
exercitar e desenvolver, de forma lúdica, suas habilidades e funções mentais.
Paralelamente às aulas, eram oferecidos serviços e assistência
médica, odontológica, psicológica, cursos para preparação de professores,
palestras para orientação de familiares e voluntários que cuidavam de
excepcionais.
Além disso, havia o acompanhamento sistemático do desenvolvimento
de cada aluno nos níveis somático e psicológico, visando a avaliação do
trabalho realizado e o melhor conhecimento científico das diversas disfunções
apresentadas pelas crianças e adolescentes.
Outro aspecto ao qual se dava atenção era a preparação para a
inclusão da criança na vida social fora da Sociedade Pestalozzi. Diversas das
atividades oferecidas visavam não só o desenvolvimento das funções mentais, mas
também o desenvolvimento moral e a socialização da criança. Nas diversas oficinas
a que tinham acesso, os alunos aprendiam um ofício que seria útil como meio de
ganhar a vida fora da Fazenda do Rosário. Também esta saída dos alunos era
acompanhada, de forma a permitir a adaptação gradual do aluno a um novo
ambiente.
Consciente de que tinha um papel social a cumprir, de que não
podia se omitir frente a um problema identificado a partir de sua atuação em
psicologia da criança, Antipoff, em seu tempo, foi incansável na elaboração e
avaliação de propostas para uma educação especial. Na Fazenda do Rosário a
proposta educacional da Escola Nova foi eficazmente aplicada à educação
especial. Aí as propostas da Escola Nova assumiram o caráter democrático
desejado por Antipoff, sendo usado para a melhoria das condições de educação
não só das crianças que se enquadravam nos padrões de normalidade, mas também
daquelas que, por algum motivo se desviavam deste padrão - e que, nas escolas
públicas acabavam por ser excluídas do sistema educacional.
Com uma nova
concepção acerca do caráter da excepcionalidade, parte da contradição que
marcara as intervenções anteriores desapareceu. Era ampla a preocupação com o
desenvolvimento físico, psicológico, moral e social das crianças. Também sua
reinserção na sociedade era alvo de intervenção, enfatizando-se a necessidade
de um acompanhamento dos adolescentes nesse processo que deveria ser
gradual.
Entretanto esta proposta surgiu em um determinado cenário social,
não deixando de se sujeitar às suas condições. Mesmo que no interior da Fazenda
do Rosário o pensamento de Antipoff se concretizasse em um modelo de educação
democrática, o fato de seu funcionamento ocorrer no campo, afastado da vida
social comum, gerou novas contradições. Desta vez, relacionadas à reinserção
dos adolescentes à sociedade. Apesar de diversos dos ex-alunos haverem
conseguido de forma satisfatória esta reinserção, permaneceu a crítica à
localização da escola no meio rural e às dificuldades deste processo de
reinserção. Hoje, é a pesquisa histórica que vem resgatando o pensamento que
estava por trás dos resultados alcançados e as contradições que ele manifesta:
desejo de inclusão e justificativa da segregação.
Com este relato o que pretendemos apresentar não foi um modelo de
atuação. Quisemos, ao contrário, mostrar que a prática psicológica na educação
das crianças excepcionais está sujeita às influências do pensamento de seu
tempo e, por isto, sujeita também a resultados que podem se mostrar ou ser
interpretados de maneira bastante diversa da que se propunha.
Atualmente, as questões que são pertinentes quando consideramos a
prática da psicologia na educação do excepcional não são muito diferentes
daquelas que inspiraram as propostas de Antipoff. Entretanto o referencial
teórico-prático que temos disponível é outro. Está na pauta dos debates a proposta
de educação inclusiva, já que a LDB propõe que as crianças excepcionais sejam
aceitas nas classes comuns das escolas públicas e que as escolas especiais
sejam coadjuvantes no processo educacional destas crianças. De acordo com
Lüscher (1999) discute-se a forma pela qual se dará este processo, a
necessidade de preparação das professoras e das outras crianças visando evitar
a discriminação. Já estão também sendo apontadas algumas dificuldades para o
processo, como o caso de escolas que se recusam a aceitar a matrícula das
crianças excepcionais.
Em síntese, hoje, diversas são as propostas, os eixos de discussão
e os problemas que aparecem em torno da educação inclusiva - e, vale ressaltar,
todos sujeitos às contradições apontadas, pois, de acordo com o discurso
vigente, ao mesmo tempo em que se propõe a inclusão, teme-se que esta gere a
segregação. Entretanto, tais sujeições, tais temores, tais possibilidades não
devem levar à paralisação e nem devem ser tomadas como limites intransponíveis,
mas como desafios para as novas propostas. Que estas sejam planejadas e
implantadas com um cuidado, preparação de pessoal e avaliação tais que no
futuro se possa perceber que houve realmente a inclusão, pois, sabendo das
contradições possíveis de aparecer na mais inocente e bem intencionada ideia,
sabemos o bastante para não mais esperar que só o futuro avalie os resultados
das nossas intervenções.
Faz-se por isso necessário que nós psicólogos tenhamos sempre em
mente que nossas propostas e intervenções têm efeitos sociais que não podem ser
desprezados. Assim, poderemos pretender atuar de forma a fazer com que os
ideais de uma educação democrática (leia-se aí inclusiva) de hoje não se tornem
futuros instrumentos de segregação.
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