Psicologa Organizacional

25 de setembro de 2015

Psicologia e Bioética: Interfaces de Saberes e Práticas






Ao longo da evolução humana, a concepção de que os seres humanos possuíam uma essência que deveria ser revelada através do conhecimento ou da fé em um ser superior vigorou até a idade média. As verdades eram apregoadas como universais e absolutas, e sua aceitação em grau teórico prático, eram atributos para a liberdade, e para uma vida consciente, feliz e boa, suscitando o entendimento que justificava as relações de poder que afetavam principalmente as relações médico-paciente. Os médicos eram os detentores de um saber superior e privativo que deveria dirigir quem não o possuía, de forma que possibilitasse viver sem doenças no caminho do bem e da felicidade.
Mas, com avanço das técnociências, fomos confrontados com novos trajetos a serem percorridos, por sua vez, novos paradigmas e reflexões relacionadas às relações de poder, relações profissionais de saúde e pacientes, pesquisas com seres humanos, assim como, o advento da Bioética fazendo fronteiras com outros saberes, nos alertando sobre os novos valores construídos a serem vivenciados.
Essa pesquisa nos traz uma revisão bibliográfica, que objetiva percorrer a trajetória do advento da Bioética fazendo fronteiras com outros saberes, através dos seus conceitos elucidativos sobre a ética na pesquisa com seres humanos em Psicologia.
Com o surgimento do Renascimento na idade moderna emerge uma alteração dos valores, e concepção de mundo hegemônica através do Iluminismo, colocando a razão em uma posição de maior relevo, trazendo a substituição da ordem natural de inspiração metafísica pela autonomia, e por uma orientação moral diferente da ordem imposta anteriormente.
[...] a partir do Iluminismo afirmou-se o caráter autônomo do indivíduo chegando-se a definição do princípio de liberdade moral: todo indivíduo é um agente moral e deve ser tratado e respeitado como tal (VON ZUBEN, 1999, p.5).
A razão como novo protótipo, ao mesmo tempo em que leva a consciência, a liberdade de escolha, também defende o direito do ser humano de optar pelos valores e pela atitude que tomará, de maneira a exigir que a sociedade acolha a diferença oportunizando o crescimento dos poderes humanos, em decorrência da sua engenhosidade para desenvolver a ciência e a técnica.
Consequentemente, as enormes possibilidades apresentadas aos seres humanos colocam em perigo a própria razão e seus poderes de dirigir os sujeitos, acarretando mudanças nos âmbito da cultura, das relações sociais, atingindo os valores morais, por sua vez, modificando  o horizonte ético das pessoas.
Em decorrência desse fenômeno, os efeitos positivos são inúmeros, no entanto, os negativos também, produzindo posições dicotômicas de pensamentos sobre as tecnociências, que variam desde sua exaltação até sua recusa. As circunstâncias apresentadas contra as tecnociências, a acusam de manipular os seres humanos, destruindo sua natureza, seus sentimentos e sua afetividade, bem como, sua composição física por meio de manipulações genéticas e psicológicas, ao alertar sobre a probabilidade de manipulação da ciência no domínio psíquico, através do poder dos produtos químicos na inibição ou recondução de sentimentos e afetos, o que poderia ser perpetrado de modo natural, por meio de processos terapêuticos baseados na escuta e na reelaboração de situações vividas ou mentalmente construídas.
Nessa direção, muitos fatores corroboram para tornar a situação preocupante, de como o grande avanço da ciência ao lado da estagnação da ética, poderão dar conta dos problemas emergentes que a nova sociedade apresenta? Quais seriam as probabilidades das tecnociências e a ética caminharem lado a lado, em harmonia?
A Bioética emerge nessa conjuntura e tem como finalidade inaugurar um novo modo de olhar, cuidar e orientar o poder humano revigorado com o avanço da ciência e da técnica. Inicialmente, voltado apenas para biomedicina, que no contexto de sua evolução, alargou fronteiras, abarcando questões referentes ao meio ambiente, numa resposta precisa da complexidade da sociedade moderna. A Bioética é a parte da Ética, ramo da  filosofia, que focaliza as questões referentes à vida humana e, portanto, à saúde, que tendo a vida como objeto de estudo, trata também da morte (intrínseca à vida). Sendo caracterizada pela reunião de múltiplos referenciais, próprios de quem lida com diversas áreas de saberes, e com uma metodologia nova, baseada no pluralismo e no respeito à diversidade social.
Até a década de 1970, na Bioética vigorou a direção religiosa que consistia em defender os principais problemas que acometiam os seres humanos e o planeta, os quais só poderiam ser resolvidos através de bases éticas teológicas.
Com as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial com os seres humanos, a título de pesquisa, surge nos Estados Unidos, uma nova orientação bioética. As discussões não negavam o grande valor da ciência, suas contribuições e nem propunham a sua interrupção, mas sim, uma maior necessidade ética em orientar sua produção e aplicação, ocasionados pela grandiosidade de problemas éticos, justamente por essa lacuna em sua orientação. O Principalismo tornou-se o grande paradigma hegemônico e ainda hoje vivifica com suas interfaces éticas.
O Principalismo
Esse preceito tem por bases morais, a autonomia, consentimento esclarecido, beneficência e justiça. Em meio a todos eles, a beneficência é considerada a principal, pois tem como um dos ensinamentos, considerar que o ser humano e seu bem estar, devem ser a meta de toda ação humana, dentre elas, as que se referem à ciência e a técnica.
Em meio a as qualidades da bioética, é essencial considerar, à forma simples de tratar problemas, o realce na autonomia do sujeito, ao seu direito de escolha de assumir uma orientação ética, apenas se ela for coerente com seus princípios e não de forma imposta pelo uso do poder.
De acordo com Pegoraro (2002), “[...] a pessoa autônoma é a que decide o que é bom para si ou aquilo que faz o seu bem estar”. E sustenta também o autor que “[...] nenhuma moral pode impor- se aos seres humanos contra sua consciência” (PEGORARO, 2002, p.106).
Por essa trajetória, enfatizamos as condições necessárias ao agir moral, tendo em vista que, só podemos falar de responsabilidade pelos atos praticados se eles forem livres e conscientes. Entretanto, elucidamos que não se trata de liberdade absoluta, de autonomia sem limites, ou seja, ao sermos seres articulados com outros indivíduos e com condicionamentos em várias ordens na coletividade, temos que fazer uma construção dialética e dialógica, que sejam compartilhadas e discutidas.
A bioética lida com evidências baseadas em fatos, que têm por objeto um próximo existente e/ou próximos ausentes. A disciplina trata de temas específicos como nascer/não nascer (aborto), morrer/não morrer (eutanásia), saúde/doença (ética biomédica), bem-estar/mal-estar (ética-biopsicológica) e se ocupa de novas áreas de atuação do conhecimento, como clonagem (ética - genética), irresponsabilidade perante o futuro (ética de gerações), depredação da natureza extra-humana circundante e agressões ao equilíbrio sistêmico das espécies (ecoética).
Entre as diversas práticas da bioética destacam-se atividades terapêuticas em sentido amplo. Todo e qualquer exercício das relações profissionais de médicos, enfermeiros, dentistas, psicólogos, nutricionistas, biólogos, fisioterapeutas e demais técnicos especializados em saúde e doença, bem como os usuários das novas técnicas biomédica e farmacológicas, tornam-se destinatários do discurso bioético, por sua vez, também ficam na condição de pacientes, devendo respostas à bioética.
É indispensável aclarar, que a Bioética, sobretudo por sua face voltada para o relacionamento com os pacientes, não diz respeito só à atividade do médico. Não há diferença entre o vínculo médico/paciente, psicólogo/paciente, fisioterapeuta/paciente, sendo assim para todas as outras ligações entre os pacientes e os profissionais de saúde.
E é nessa totalidade que trataremos a questão principal a ser abordada no presente artigo, que são as questões éticas em pesquisa com seres humanos em Psicologia e a Bioética.
A Psicologia ao fazer fronteira com outros saberes, incluindo a bioética que envolve os mais diversos aspectos da vida humana, autoriza a integração de saberes e proporciona que a pesquisa em Psicologia se desenvolva de acordo com os cuidados éticos no respeito à vida e a pessoa na sua integralidade.
Assinala Goldim (1998), que nesse campo de saber, devem ser observados os aspectos relacionados à confidencialidade e à privacidade. Estes se destacam nas pesquisas, e na área da Psicologia em relação à formação e a prática do profissional.
De acordo com Francisconi e Goldim (1998), a confidencialidade se origina da palavra confiança, condição básica para o estabelecimento de um bom vínculo terapêutico, em que seja preservado tudo que é relatado pelo paciente. À privacidade refere-se à limitação do acesso às informações de uma pessoa no que se relaciona a sua intimidade.
A Psicologia vem desenvolvendo diferentes estudos em áreas do comportamento e do desenvolvimento humano, estudos que nos levam a questionar como estão sendo utilizados os conceitos de sigilo, privacidade e confidencialidade nas pesquisas desenvolvidas por profissionais da área da Psicologia.
Pesquisas Com Seres Humanos e Psicologia
Atualmente os projetos de pesquisa na área da Psicologia, são submetidos à avaliação pelos Comitês de Ética em Pesquisa, baseados na Resolução do Conselho Nacional de Saúde – CNS 196/96 e na Resolução do Conselho Federal de Psicologia – CFP/ 016/2000.
Afirma Freitas e Hossne (1998) que no Brasil, em 1998, o Conselho Nacional de Saúde (CNS 01/88) em sua primeira resolução, já estabelecia normas de pesquisa com seres humanos. Resolução essa, constituída de normas que foram substituídas pelas diretrizes regulamentadoras de pesquisas com seres humanos – Resolução CNS 196/96.
Essas diretrizes e normas consideram que todos os projetos com seres humanos envolvem riscos individuais ou coletivos que podem ser físicos, psíquicos, morais, intelectuais, sociais, culturais ou espirituais (Clotet et al, 2000).
Para o Conselho de Organizações Internacionais de Ciências Médicas (CIOMS, 2004) as pesquisa com seres humanos para serem concretizadas, devem obedecer aos aspectos éticos básicos, sendo os princípios éticos aplicados de diferentes formas de acordo com o caso a que se propõem. Isto é, qualquer área em que for feita a pesquisa com seres humanos, não pode perder a ideia de respeito ao ser humano em sua integralidade, contemplando o conceito da autonomia, ao crer que cada pessoa tem condições e direito de tomar suas decisões, salvo o caso de crianças por ter sua capacidade de autonomia diminuída, por serem dependentes dos pais e ou responsáveis, ou então, em casos de pessoas com capacidades diminuídas, como os portadores de deficiência mental.
A beneficência sugere que os benefícios sejam maiores e os prejuízos menores, evidenciando a necessidade de pesquisas bem estruturadas que não tragam riscos ao bem-estar dos sujeitos. No contexto do princípio da justiça avalia que os benefícios não devem ser distribuídos de forma dessemelhante na prática da pesquisa, ou seja, não se pode promover melhoramentos de qualquer espécie para alguns e para outros não, a distribuição tem que ocorrer de forma equitativa.
Resolução 196/1996
Resolução 196, aprovada no Brasil no de 10 de outubro de 1996, pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), objetivando orientar e regulamentar as pesquisas com seres humanos no país, se baseou na Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Código de Nuremberg e a Declaração de Helsinki, assim como foi fundamentada na Constituição de 1988, Estatuto da Criança e do Adolescente; Lei Orgânica da Saúde, de 19 de setembro de 1990 (PASSOS, 2007).
Essa resolução segue os princípios básicos da bioética: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça. Objetivando aclarar os conceitos básicos relacionados à pesquisa com seres humanos, a pesquisa é definida, como aquela que os envolve direta ou indiretamente, inclusive o manejo de informações e de materiais, ao estabelecer como exigência, que todo projeto de pesquisa seja acompanhado por um protocolo, que evidencie as qualidades técnicas e éticas do pesquisador, os sujeitos da pesquisa e de que forma serão envolvidos na mencionada pesquisa.
Os pesquisados terão que ser informados do conteúdo e significado da investigação, bem como participará dela, quais suas consequências positivas e negativas, se existe a probabilidade de algum tipo de sofrimento, e somente após, todos os esclarecimentos feitos pelo pesquisador, devem escolher livremente, se aceitam ou não participar.
Advertimos que o consentimento dos sujeitos em participar da pesquisa, não diminui a responsabilidade do pesquisador com seu bem-estar, nem com as consequências que poderão advir dela. Se houver algum tipo de risco ou prejuízo aos participantes, à pesquisa deve ser interrompida, e os envolvidos ressarcidos dos danos.
Com o objetivo de garantir o cumprimento das normas estabelecidas, é previsto na resolução 196/96, a criação de Comitês de Ética em todos os Estados e Instituições que se dediquem a produção de conhecimento na área.
Os comitês possuem uma composição multiprofissional, com profissionais de diversas áreas de atuação (saúde, exatas e humanas) assim como filósofos, religiosos e representantes das comunidades que frequentam as instituições.
Os Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) tem como objetivo:
[...] salvaguardar os direitos e a dignidade dos sujeitos na pesquisa. Além disso, o CEP contribui para a qualidade das pesquisas e para discussão do papel da pesquisa no desenvolvimento institucional e social da comunidade. Contribui ainda para valorização do pesquisador que  recebe o reconhecimento de que sua proposta é eticamente adequada (BRASIL, 2002, p.11).
Esses comitês são vinculados a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), órgão responsável pela coordenação dos CEPs, mantendo diálogo constante. Para atender as exigências da Resolução 196, o Conselho Federal de Psicologia criou a Resolução 016/2000, que dispõe sobre a realização de pesquisa com seres humanos em Psicologia.
Segundo Brasil (1997), O Artigo 1º da Resolução 016/2000 estabelece que toda pesquisa em Psicologia com seres humanos deverá ser instruída de um protocolo, a ser submetido à apreciação de Comitê de Ética, reconhecido pelo Conselho Nacional de Saúde, como determina a Resolução 196/96 do CNS.
O Artigo 2º esclarece o que significa o protocolo e como ele deve ser instruído, exigindo que o pesquisador explique e justifique a relevância da pesquisa, os procedimentos a serem adotados e o consentimento esclarecido dos sujeitos, dentre outras considerações.
O Artigo 3º enfatiza os riscos da pesquisa, define aqueles que podem ser considerados mínimos ou não. E o paragrafo 3º do mencionado artigo, traz orientação específica aos profissionais e pesquisadores em Psicologia.
Cita Brasil (1997), que as pesquisas que manipulem variáveis que possam  gerar ansiedade, ou utilizem instrumentos (inclusive entrevistas) com o objetivo de obter dados e informações sobre eventos que possam ter sido traumáticos (por exemplo, com vítimas de violência, abuso físico ou sexual, entre outros) não receberão classificação de risco mínimo. No entanto, o pesquisador deverá incorporar procedimentos que permitam avaliar, ao término da participação de cada indivíduo, se nenhum dano foi causado.
Outro elemento realçado pela Resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP) cita o sigilo e o uso de informações, sendo constituído de seis parágrafos que obrigam o pesquisador a guardar sigilo sobre as informações que lhe forem concedidas sigilosamente, recomenda e exige cuidados especiais com os participantes mais vulneráveis, como crianças, idosos, adolescentes e pessoas sem condições de decidir por si mesmas a dar o livre consentimento, exigindo que pesquisador se comprometa a buscar iniciativas necessárias, ao constatar situações em que os participantes da pesquisa estejam sendo submetidos a situações desumanas e prejudiciais aos indivíduos.
Contudo, o documento expedido pelo CFP, vem resolver algumas questões colocadas por profissionais da área, acerca da imprecisão e elucidação dos documentos anteriores, como o Código de Ética de 1988, mas não abrange todas as questões prejudiciais das pesquisas em Psicologia com seres humanos.
Pontua Medeiros (2002), que a postura ética exige muito mais do que uma consulta ao Código de Ética Profissional, ou observância dos princípios da Bioética. Deve haver uma reflexão crítica do Psicólogo baseada na inter-relação de fatores constituintes do dilema ético, bem como de recursos morais para solução dos mesmos.
Comenta a autora, que a postura profissional não deve ser baseada unicamente na regra, na norma, naquilo que o Psicólogo valoriza ou considera verdadeiro, mas também deve ser considerado o que o outro acredita, valoriza, evitando a moralização, opressão e marginalização de sujeitos que esperam ser tratados com respeito e dignidade (MEDEIROS, 2002:33).
Em relação à Psicologia, o profissional deve ter consciência de que, muitas das suas intervenções não estão direcionadas ao corpo físico dos indivíduos, porém atingem de forma significativa os aspectos emocionais dos sujeitos, possibilitando danos de outra ordem.
A Psicologia se utiliza de instrumento metodológico de avaliação (testes, entrevistas, dentre outros) e os aspectos intrapsíquicos, evidenciando a necessidade de não negligenciar os princípios bioéticos nas pesquisas com seres humanos, uma vez que, algumas pessoas erroneamente minimizam os efeitos das intervenções na pesquisa psicológica.
Considerações Finais
Ao analisar e decidir fazer pesquisa com seres humanos em Psicologia, é relevante notar os aspectos éticos inerentes à pesquisa. Os profissionais, pesquisadores e estudantes necessitam estar sensíveis aos cuidados relevantes desenvolvidos durante as pesquisas científicas, de maneira a não ocasionar prejuízos ou riscos aos participantes das pesquisas. É imprescindível o respeito à dignidade humana, além do rigor metodológico a ser trilhado com coerência.
Erroneamente, quando se trata de outras áreas de saberes, levantar questionamentos bioéticos, parece extremamente valioso, mas quando se trata da Psicologia como esfera de saber, a ser pesquisado, através da utilização de seres humanos em pesquisas científicas, é suposta a ideia de que não se faz necessário o discurso bioético, na medida em que o Psicólogo, durante a execução do seu trabalho, não invade o corpo do outro.
Porém, alertamos para a realidade de que, embora as intervenções do profissional Psicólogo, seja apenas no nível da palavra, elas podem sim, intervir na saúde mental dos sujeitos, possibilitando sérias consequências quando as técnicas não são bem utilizadas. De fato, não ocorre a invasão do corpo físico, mas sim, do corpo subjetivo dos sujeitos, possibilitando o surgimento de diversificadas demandas no corpo subjetivo.

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