Sigmund Freud
Editora Imago
I
É impossível fugir à impressão de que as
pessoas comumente empregam falsos padrões de avaliação — isto é, de que buscam
poder, sucesso e riqueza para elas mesmas e os admiram nos outros, subestimando
tudo aquilo que verdadeiramente tem valor na vida. No entanto, ao formular
qualquer juízo geral desse tipo, corremos o risco de esquecer quão variados são
o mundo humano e sua vida mental. Existem certos homens que não contam com a
admiração de seus contemporâneos, embora a grandeza deles repouse em atributos
e realizações completamente estranhos aos objetivos e aos ideais da multidão.
Facilmente, poder-se-ia ficar inclinado a supor que, no final das contas,
apenas uma minoria aprecia esses grandes homens, ao passo que a maioria pouco
se importa com eles. Contudo, devido não só às discrepâncias existentes entre
os pensamentos das pessoas e as suas ações, como também à diversidade de seus
impulsos plenos de desejo, as coisas provavelmente não são tão simples assim.
Um desses seres excepcionais refere-se a
si mesmo como meu amigo nas cartas que me remete. Enviei-lhe o meu pequeno
livro que trata a religião como sendo uma ilusão, e ele me respondeu que
concordava inteiramente com esse meu juízo, lamentando, porém, que eu não
tivesse apreciado corretamente a verdadeira fonte da religiosidade. Esta, diz
ele, consiste num sentimento peculiar, que ele mesmo jamais deixou de ter
presente em si, que encontra confirmado por muitos outros e que pode imaginar atuante
em milhões de pessoas. Trata-se de um sentimento que ele gostaria de designar
como uma sensação de ‘eternidade’, um sentimento de algo ilimitado, sem
fronteiras — ‘oceânico’, por assim dizer. Esse sentimento, acrescenta,
configura um fato puramente subjetivo, e não um artigo de fé; não traz consigo
qualquer garantia de imortalidade pessoal, mas constitui a fonte da energia
religiosa de que se apoderam as diversas Igrejas e sistemas religiosos, é por
eles veiculado para canais específicos e, indubitavelmente, também por eles
exaurido. Acredita ele que uma pessoa, embora rejeite toda crença e toda
ilusão, pode corretamente chamar-se a si mesma de religiosa com fundamento
apenas nesse sentimento oceânico.As opiniões expressas por esse amigo que tanto
respeito, e que outrora já louvara a magia da ilusão num poema, causaram-me não
pequena dificuldade. Não consigo descobrir em mim esse sentimento ‘oceânico’.
Não é fácil lidar cientificamente com sentimentos. Pode-se tentar descrever os
seus sinais fisiológicos. Onde isso não é possível — e temo que também o
sentimento oceânico desafie esse tipo de caracterização —, nada resta senão
cair no conteúdo ideacional que, de forma mais imediata, está associado ao
sentimento. Se compreendi corretamente o meu amigo, ele quer significar, com
esse sentimento, a mesma coisa que o consolo oferecido por um dramaturgo
original e um tanto excêntrico ao seu herói que enfrenta uma morte
auto-infligida: ‘Não podemos pular para fora deste mundo.Isso equivale a dizer
que se trata do sentimento de um vínculo indissolúvel, de ser uno com o mundo
externo como um todo. Posso observar que, para mim, isto parece, antes, algo da
natureza de uma percepção intelectual, que, na verdade, pode vir acompanhada de
um tom de sentimento, embora apenas da forma como este se acharia presente em
qualquer outro ato de pensamento de igual alcance. Segundo minha própria
experiência, não consegui convencer-me da natureza primária desse sentimento;
isso, porém, não me dá o direito de negar que ele de fato ocorra em outras
pessoas. A única questão consiste em verificar se está sendo corretamente
interpretado e se deve ser encarado como a fons et origo de toda a necessidade
de religião.
Nada tenho a sugerir que possa exercer
influência decisiva na solução desse problema. A idéia de os homens receberem
uma indicação de sua vinculação com o mundo que os cerca por meio de um
sentimento imediato que, desde o início, é dirigido para esse fim, soa de modo
tão estranho e se ajusta tão mal ao contexto de nossa psicologia, que se torna
justificável a tentativa de descobrir uma explicação psicanalítica — isto é,
genética — para esse sentimento. A linha de pensamento que se segue, sugere
isso por si mesma. Normalmente, não nada de que possamos estar mais certos do
que do sentimento de nosso eu, do nosso próprio ego. O ego nos aparece como
algo autônomo e unitário, distintamente demarcado de tudo o mais. Ser essa
aparência enganadora — apesar de que, pelo contrário, o ego seja continuado
para dentro, sem qualquer delimitação nítida, por uma entidade mental
inconsciente que designamos como id, à qual o ego serve como uma espécie de
fachada —, configurou uma descoberta efetuada pela primeira vez através da
pesquisa psicanalítica, que, de resto, ainda deve ter muito mais a nos dizer
sobre o relacionamento do ego com o id. No sentido do exterior, porém, o ego de
qualquer modo, parece manter linhas de demarcação bem e claras e nítidas. Há
somente um estado — indiscutivelmente fora o comum, embora não possa
estigmatizado como patológico — em que ele não se apresenta assim. No auge do
sentimento de amor, a fronteira entre ego e objeto ameaça desaparecer.Contra
todas as provas de seus sentidos, um homem que se ache enamorado declara que
‘eu’ e ‘tu’ são um só, e está preparado para se conduzir como se isso
constituísse um fato. Aquilo que pode ser temporariamente eliminado por uma
função fisiológica [isto é, normal] deve também, naturalmente, estar sujeito a
perturbações causadas por processos patológicos. A patologia nos familiarizou com
grande número de estados em que as linhas fronteiriças entre o ego e o mundo
externo se tornam incertas, ou nos quais, na realidade, elas se acham
incorretamente traçadas. Há casos em que partes do próprio corpo de uma pessoa,
inclusive partes de sua própria vida mental — suas percepções, pensamentos e
sentimentos —, lhe parecem estranhas e como não pertencentes a seu ego; há
outros casos em que a pessoa atribui ao mundo externo coisas que claramente se
originam em seu próprio ego e que por este deveriam ser reconhecidas. Assim,
até mesmo o sentimento de nosso próprio ego está sujeito a distúrbios, e as
fronteiras do ego não são permanentes.
Uma reflexão mais apurada nos diz que o
sentimento do ego do adulto não pode ter sido o mesmo desde o início. Deve ter
passado por um processo de desenvolvimento, que, se não pode ser demonstrado,
pode ser construído com um razoável grau de probabilidade. Uma criança
recém-nascida ainda não distingue o seu ego do mundo externo como fonte das
sensações que fluem sobre ela. Aprende gradativamente a fazê-lo, reagindo a
diversos estímulos. Ela deve ficar fortemente impressionada pelo fato de certas
fontes de excitação, que posteriormente identificará como sendo os seus
próprios órgãos corporais, poderem provê-la de sensações a qualquer momento, ao
passo que, de tempos em tempos, outras fontes lhe fogem — entre as quais se
destaca a mais desejada de todas, o seio da mãe —, só reaparecendo como
resultado de seus gritos de socorro. Desse modo, pela primeira vez, o ego é contrastado
por um ‘objeto’, sob a forma de algo que existe ‘exteriormente’ e que só é
forçado a surgir através de uma ação especial. Um outro incentivo para o
desengajamento do ego com relação à massa geral de sensações — isto é, para o
reconhecimento de um ‘exterior’, de um mundo externo — é proporcionado pelas
freqüentes, múltiplas e inevitáveis sensações de sofrimento e desprazer, cujo
afastamento e cuja fuga são impostos pelo princípio do prazer, no exercício de
seu irrestrito domínio. Surge, então, uma tendência a isolar do ego tudo que
pode tornar-se fonte de tal desprazer, a lançá-lo para fora e a criar um puro
ego em busca de prazer, que sofre o confronto de um ‘exterior’ estranho e
ameaçador. As fronteiras desse primitivo ego em busca de prazer não podem fugir
a uma retificação através da experiência. Entretanto, algumas das coisas
difíceis de serem abandonadas, por proporcionarem prazer, são, não ego, mas
objeto, e certos sofrimentos que se procura extirpar mostram-se inseparáveis do
ego, por causa de sua origem interna. Assim, acaba-se por aprender um processo
através do qual, por meio de uma direção deliberada das próprias atividades
sensórias e de uma ação muscular apropriada, se pode diferenciar entre o que é
interno — ou seja, que pertence ao ego — e o que é externo — ou seja, que emana
do mundo externo. Desse modo, dá-se o primeiro passo no sentido da introdução
do princípio da realidade, que deve dominar o desenvolvimento futuro. Essa
diferenciação, naturalmente, serve à finalidade prática de nos capacitar para a
defesa contra sensações de desprazer que realmente sentimos ou pelas quais
somos ameaçados. A fim de desviar certas excitações desagradáveis que surgem do
interior, o ego não pode utilizar senão os métodos que utiliza contra o
desprazer oriundo do exterior, e este é o ponto de partida de importantes
distúrbios patológicos.Desse modo, então, o ego se separa do mundo externo. Ou,
numa expressão mais correta, originalmente o ego inclui tudo; posteriormente,
separa, de si mesmo, um mundo externo. Nosso presente sentimento do ego não
passa, portanto, de apenas um mirrado resíduo de um sentimento muito mais
inclusivo — na verdade, totalmente abrangente —, que corresponde a um vínculo
mais íntimo entre o ego e o mundo que o cerca. Supondo que há muitas pessoas em
cuja vida mental esse sentimento primário do ego persistiu em maior ou menor
grau, ele existiria nelas ao lado do sentimento do ego mais estrito e mais
nitidamente demarcado da maturidade, como uma espécie de correspondente seu.
Nesse caso, o conteúdo ideacional a ele apropriado seria exatamente o de
ilimitabilidade e o de um vínculo com o universo — as mesmas idéias com que meu
amigo elucidou o sentimento ‘oceânico’.
Contudo, terei eu o direito de presumir a
sobrevivência de algo que já se encontrava originalmente lá, lado a lado com o
que posteriormente dele se derivou? Sem dúvida, sim. Nada existe de estranho em
tal fenômeno, tanto no campo mental como em qualquer outro. No reino animal,
atemo-nos à opinião de que as espécies mais altamente desenvolvidas se
originaram das mais baixas; no entanto, ainda hoje, encontramos em existência
todas as formas simples. A raça dos grandes sáurios se extinguiu e abriu
caminho para os mamíferos; o crocodilo, porém, legítimo representante dos
sáurios, ainda vive entre nós. Essa analogia pode ser excessivamente remota,
além de debilitada pela circunstância de as espécies inferiores sobreviventes
não serem, em sua maioria, os verdadeiros ancestrais das espécies mais
altamente desenvolvidas dos dias atuais. Via de regra, os elos intermediários
extinguiram-se, e só os conhecemos através de reconstruções. No domínio da
mente, por sua vez, o elemento primitivo se mostra tão comumente preservado, ao
lado da versão transformada que dele surgiu, que se faz desnecessário fornecer
exemplos como prova. Quando isso ocorre, é geralmente em conseqüência de uma
divergência no desenvolvimento: determinada parte (no sentido quantitativo) de
uma atitude ou de um impulso instintivo permaneceu inalterada, ao passo que
outra sofreu um desenvolvimento ulterior.
Esse fato nos conduz ao problema mais
geral da preservação na esfera da mente. O assunto mal foi estudado ainda, mas
é tão atraente e importante, que nos será permitido voltarmos um pouco nossa
atenção para ele, ainda que nossa desculpa seja insuficiente. Desde que
superamos o erro de supor que o esquecimento com que nos achamos familiarizados
significava a destruição do resíduo mnêmico — isto é, a sua aniquilação —,
ficamos inclinados a assumir o ponto de vista oposto, ou seja, o de que, na
vida mental, nada do que uma vez se formou pode perecer — o de que tudo é, de
alguma maneira, preservado e que, em circunstâncias apropriadas (quando, por
exemplo, a regressão volta suficientemente atrás), pode ser trazido de novo à
luz. Tentemos apreender o que essa suposição envolve, estabelecendo uma
analogia com outro campo.
Escolheremos como exemplo a história da
Cidade Eterna. Os historiadores nos dizem que a Roma mais antiga foi a Roma
Quadrata, uma povoação sediada sobre o Palatino. Seguiu-se a fase dos
Septimontium, uma federação das povoações das diferentes colinas; depois, veio
a cidade limitada pelo Muro de Sérvio e, mais tarde ainda, após todas as
transformações ocorridas durante os períodos da república e dos primeiros césares,
a cidade que o imperador Aureliano cercou com as suas muralhas. Não
acompanharemos mais as modificações por que a cidade passou;
perguntar-nos-emos, porém, o quanto um visitante, que imaginaremos munido do
mais completo conhecimento histórico e topográfico, ainda pode encontrar, na
Roma de hoje, de tudo que restou dessas primeiras etapas. À exceção de umas
poucas brechas, verá o Muro de Aureliano quase intacto. Em certas partes,
poderá encontrar seções do Muro de Sérvio que foram escavadas e trazidas à luz.
Se souber bastante — mais do que a arqueologia atual conhece —, talvez possa
traçar na planta da cidade todo o perímetro desse muro e o contorno da Roma
Quadrata.
Dos prédios que outrora ocuparam essa
antiga área, nada encontrará, ou, quando muito, restos escassos, já que não
existem mais. No máximo, as melhores informações sobre a Roma da era
republicana capacitariam-no apenas a indicar os locais em que os templos e
edifícios públicos daquele período se erguiam. Seu sítio acha-se hoje tomado
por ruínas, não pelas ruínas deles próprios, mas pelas de restaurações
posteriores, efetuadas após incêndios ou outros tipos de destruição. Também
faz-se necessário observar que todos esses remanescentes da Roma antiga estão
mesclados com a confusão de uma grande metrópole, que se desenvolveu muito nos
últimos séculos, a partir da Renascença. Sem dúvida, já não há nada que seja
antigo, enterrado no solo da cidade ou sob os edifícios modernos. Este é o modo
como se preserva o passado em sítios históricos como Roma. Permitam-nos agora,
num vôo da imaginação, supor que Roma não é uma habitação humana, mas uma
entidade psíquica, com um passado semelhantemente longo e abundante — isto é,
uma entidade onde nada do que outrora surgiu desapareceu e onde todas as fases
anteriores de desenvolvimento continuam a existir, paralelamente à última. Isso
significaria que, em Roma, os palácios dos césares e as Septizonium de Sétimo
Severo ainda se estariam erguendo em sua antiga altura sobre o Palatino e que o
castelo de Santo Ângelo ainda apresentaria em suas ameias as belas estátuas que
o adornavam até a época do cerco pelos godos, e assim por diante. Mais do que
isso: no local ocupado pelo Palazzo Cafarelli, mais uma vez se ergueria — sem
que o Palazzo tivesse de ser removido — o Templo de Júpiter Capitolino, não
apenas em sua última forma, como os romanos do Império o viam, mas também na
primitiva, quando apresentava formas etruscas e era ornamentado por antefixas
de terracota. Ao mesmo tempo, onde hoje se ergue o Coliseu, poderíamos admirar
a desaparecida Casa Dourada, de Nero. Na Praça do Panteão encontraríamos não
apenas o atual, tal como legado por Adriano, mas, aí mesmo, o edifício original
levantado por Agripa; na verdade, o mesmo trecho de terreno estaria sustentando
a Igreja de Santa Maria sobre Minerva e o antigo templo sobre o qual ela foi
construída. E talvez o observador tivesse apenas de mudar a direção do olhar ou
a sua posição para invocar uma visão ou a outra.
A essa altura não faz sentido prolongarmos
nossa fantasia, de uma vez que ela conduz a coisas inimagináveis e mesmo
absurdas. Se quisermos representar a seqüência histórica em termos espaciais,
só conseguiremos fazê-lo pela justaposição no espaço: o mesmo espaço não pode
ter dois conteúdos diferentes. Nossa tentativa parece ser um jogo ocioso. Ela
conta com apenas uma justificativa. Mostra quão longe estamos de dominar as
características da vida mental através de sua representação em termos
pictóricos.
Há outra objeção a ser considerada.
Pode-se levantar a questão da razão por que escolhemos precisamente o passado
de uma cidade para compará-lo com o passado da mente. A suposição de que tudo o
que passou é preservado se aplica, mesmo na vida mental, só com a condição de
que o órgão da mente tenha permanecido intacto e que seus tecidos não tenham
sido danificados por trauma ou inflamação. Mas influências destrutivas que
possam ser comparadas a causas de enfermidade como as citadas acima nunca
faltam na história de uma cidade, ainda que tenha tido um passado menos
diversificado que o de Roma, e ainda que, como Londres, mal tenha sofrido com
as visitas de um inimigo. Demolições e substituições de prédios ocorrem no
decorrer do mais pacífico desenvolvimento de uma cidade. Uma cidade é,
portanto, a priori, inapropriada para uma comparação desse tipo com um
organismo mental.
Curvamo-nos ante essa objeção e,
abandonando nossa tentativa de esboçar um contraste impressivo, nos voltaremos
para o que, afinal de contas, constitui um objeto de comparação mais
estreitamente relacionado: o corpo de um animal ou o de um ser humano. Aqui
também, no entanto, encontramos a mesma coisa. As primeiras fases do
desenvolvimento já não se acham, em sentido algum, preservadas; foram
absorvidas pelas fases posteriores, às quais forneceram material. O embrião não
pode ser descoberto no adulto. A glândula do timo da infância, sendo
substituída, após a puberdade, por tecidos de ligação, não mais se apresenta
como tal; nas medulas ósseas do homem adulto posso, sem dúvida, traçar o
contorno do osso infantil, embora este tenha desaparecido, alongando-se e
espessando-se até atingir sua forma definitiva. Permanecem o fato de que só na
mente é possível a preservação de todas as etapas anteriores, lado a lado com a
forma final, e o de que não estamos em condições de representar esse fenômeno
em termos pictóricos.
Talvez estejamos levando longe demais essa
reflexão. Talvez devêssemos contentar-nos em afirmar que o que se passou na
vida mental pode ser preservado, não sendo, necessariamente, destruído. É
sempre possível que, mesmo na mente, algo do que é antigo seja apagado ou
absorvido — quer no curso normal das coisas, quer como exceção — a tal ponto,
que não possa ser restaurado nem revivescido por meio algum, ou que a
preservação em geral dependa de certas condições favoráveis. É possível, mas
nada sabemos a esse respeito. Podemos apenas prender-nos ao fato de ser antes
regra, e não exceção, o passado achar-se preservado na vida mental.
Assim, estamos perfeitamente dispostos a
reconhecer que o sentimento ‘oceânico’ existe em muitas pessoas, e nos
inclinamos a fazer sua origem remontar a uma fase primitiva do sentimento do
ego. Surge então uma nova questão: que direito tem esse sentimento de ser
considerado como a fonte das necessidades religiosas.
Esse direito não me parece obrigatório.
Afinal de contas, um sentimento só poderá ser fonte de energia se ele próprio
for expressão de uma necessidade intensa. A derivação das necessidades
religiosas, a partir do desamparo do bebê e do anseio pelo pai que aquela
necessidade desperta, parece-me incontrovertível, desde que, em particular, o
sentimento não seja simplesmente prolongado a partir dos dias da infância, mas
permanentemente sustentado pelo medo do poder superior do Destino. Não consigo
pensar em nenhuma necessidade da infância tão intensa quanto a da proteção de
um pai. Dessa maneira, o papel desempenhado pelo sentimento oceânico, que
poderia buscar algo como a restauração do narcisismo ilimitado, é deslocado de
um lugar em primeiro plano. A origem da atitude religiosa pode ser remontada,
em linhas muito claras, até o sentimento de desamparo infantil. Pode haver algo
mais por trás disso, mas, presentemente, ainda está envolto em obscuridade.
Posso imaginar que o sentimento oceânico
se tenha vinculado à religião posteriormente. A ‘unidade com o universo’, que
constitui seu conteúdo ideacional, soa como uma primeira tentativa de
consolação religiosa, como se configurasse uma outra maneira de rejeitar o
perigo que o ego reconhece a ameaçá-lo a partir do mundo externo. Permitam-me
admitir mais uma vez que para mim é muito difícil trabalhar com essas
quantidades quase intangíveis. Outro amigo meu, cuja insaciável vontade de
saber o levou a realizar as experiências mais inusitadas, acabando por lhe dar
um conhecimento enciclopédico, assegurou-me que, através das práticas de ioga,
pelo afastamento do mundo, pela fixação da atenção nas funções corporais e por
métodos peculiares de respiração, uma pessoa pode de fato evocar em si mesma
novas sensações e cenestesias, consideradas estas como regressões a estados
primordiais da mente que há muito tempo foram recobertos. Ele vê nesses estados
uma base, por assim dizer fisiológica, de grande parte da sabedoria do
misticismo. Não seria difícil descobrir aqui vinculações com certo número de
obscuras modificações da vida mental, tais como os transes e os êxtases.
Contudo, sou levado a exclamar, como nas palavras do mergulhador de
Schiller: ‘…Es freue sich, Wer da atmet im rosigten Licht.’
II
Em meu trabalho O Futuro de uma Ilusão
[1927c], estava muito menos interessado nas fontes mais profundas do sentimento
religioso do que naquilo que o homem comum entende como sua religião — o
sistema de doutrinas e promessas que, por um lado, lhe explicam os enigmas
deste mundo com perfeição invejável, e que, por outro, lhe garantem que uma
Providência cuidadosa velará por sua vida e o compensará, numa existência
futura, de quaisquer frustrações que tenha experimentado aqui. O homem comum só
pode imaginar essa Providência sob a figura de um pai ilimitadamente
engrandecido. Apenas um ser desse tipo pode compreender as necessidades dos
filhos dos homens, enternecer-se com suas preces e aplacar-se com os sinais de
seu remorso. Tudo é tão patentemente infantil, tão estranho à realidade, que,
para qualquer pessoa que manifeste uma atitude amistosa em relação à
humanidade, é penoso pensar que a grande maioria dos mortais nunca será capaz
de superar essa visão da vida. Mais humilhante ainda é descobrir como é vasto o
número de pessoas de hoje que não podem deixar de perceber que essa religião é
insustentável e, não obstante isso, tentam defendê-la, item por item, numa
série de lamentáveis atos retrógrados. Gostaríamos de nos mesclar às fileiras
dos crentes, a fim de encontrarmos aqueles filósofos que consideram poder
salvar o Deus da religião, substituindo-o por um princípio impessoal, obscuro e
abstrato, e dirigirmos-lhes as seguintes palavras de advertência: ‘Não tomarás
o nome do Senhor teu Deus em vão!’ E, se alguns dos grandes homens do passado
agiram da mesma maneira, de modo nenhum se pode invocar seu exemplo: sabemos
por que foram obrigados a isso.
Retornemos ao homem comum e à sua
religião, a única que deveria levar esse nome. A primeira coisa em que pensamos
é na bem conhecida expressão de um de nossos maiores poetas e pensadores,
referindo-se à relação da religião com a arte e a ciência:
Wer
Wissenschaft und Kunst besitzt, hat auch Religion; Wer jene beide nicht
besitzt, der habe Religion!
Esses dois versos, por um lado, traçam uma
antítese entre a religião e as duas mais altas realizações do homem, e, por
outro, asseveram que, com relação ao seu valor na vida, essas realizações e a
religião podem representar-se ou substituir-se mutuamente. Se também nos
dispusermos a privar o homem comum [que não possui nem ciência nem arte] de sua
religião, é claro que não teremos de nosso lado a autoridade do poeta.
Escolheremos um caminho específico para nos aproximarmos mais de uma justa
apreciação de suas palavras. A vida, tal como a encontramos, é árdua demais
para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis.
A fim de suportá-la, não podemos dispensar as medidas paliativas. ‘Não podemos
passar sem construções auxiliares’, diz-nos Theodor Fontane. Existem talvez
três medidas desse tipo: derivativos poderosos, que nos fazem extrair luz de
nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem; e substâncias
tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela. Algo desse tipo é indispensável.
Voltaire tinha os derivativos em mente quando terminou Candide com o conselho
para cultivarmos nosso próprio jardim, e a atividade científica constitui
também um derivativo dessa espécie. As satisfações substitutivas, tal como as
oferecidas pela arte, são ilusões, em contraste com a realidade; nem por isso,
contudo, se revelam menos eficazes psiquicamente, graças ao papel que a
fantasia assumiu na vida mental. As substâncias tóxicas influenciam nosso corpo
e alteram a sua química. Não é simples perceber onde a religião encontra o seu
lugar nessa série. Temos de pesquisar mais adiante.
A questão do propósito da vida humana já
foi levantada várias vezes; nunca, porém, recebeu resposta satisfatória e
talvez não a admita. Alguns daqueles que a formularam acrescentaram que, se
fosse demonstrado que a vida não tem propósito, esta perderia todo valor para
eles. Tal ameaça, porém, não altera nada. Pelo contrário, faz parecer que temos
o direito de descartar a questão, já que ela parece derivar da presunção
humana, da qual muitas outras manifestações já nos são familiares. Ninguém fala
sobre o propósito da vida dos animais, a menos, talvez, que se imagine que ele
resida no fato de os animais se acharem a serviço do homem. Contudo, tampouco
essa opinião é sustentável, de uma vez que existem muitos animais de que o
homem nada pode se aproveitar, exceto descrevê-los, classificá-los e
estudá-los; ainda assim, inumeráveis espécies de animais escaparam inclusive a
essa utilização, pois existiram e se extinguiram antes que o homem voltasse
seus olhos para elas. Mais uma vez, só a religião é capaz de resolver a questão
do propósito da vida. Dificilmente incorreremos em erro ao concluirmos que a
idéia de a vida possuir um propósito se forma e desmorona com o sistema
religioso.Voltar-nos-emos, portanto, para uma questão menos ambiciosa, a que se
refere àquilo que os próprios homens, por seu comportamento, mostram ser o
propósito e a intenção de suas vidas. O que pedem eles da vida e o que desejam
nela realizar? A resposta mal pode provocar dúvidas. Esforçam-se para obter
felicidade; querem ser felizes e assim permanecer. Essa empresa apresenta dois
aspectos: uma meta positiva e uma meta negativa. Por um lado, visa a uma
ausência de sofrimento e de desprazer; por outro, à experiência de intensos
sentimentos de prazer. Em seu sentido mais restrito, a palavra ‘felicidade’ só
se relaciona a esses últimos. Em conformidade a essa dicotomia de objetivos, a
atividade do homem se desenvolve em duas direções, segundo busque realizar — de
modo geral ou mesmo exclusivamente — um ou outro desses objetivos.
Como vemos, o que decide o propósito da
vida é simplesmente o programa do princípio do prazer. Esse princípio domina o
funcionamento do aparelho psíquico desde o início. Não pode haver dúvida sobre
sua eficácia, ainda que o seu programa se encontre em desacordo com o mundo
inteiro, tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo. Não há possibilidade
alguma de ele ser executado; todas as normas do universo são-lhe contrárias.
Ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja ‘feliz’ não se
acha incluída no plano da ‘Criação’. O que chamamos de felicidade no sentido
mais restrito provém da satisfação (de preferência, repentina) de necessidades
represadas em alto grau, sendo, por sua natureza, possível apenas como uma
manifestação episódica. Quando qualquer situação desejada pelo princípio do
prazer se prolonga, ela produz tão-somente um sentimento de contentamento muito
tênue. Somos feitos de modo a só podermos derivar prazer intenso de um
contraste, e muito pouco de um determinado estado de coisas.
Assim, nossas possibilidades de felicidade
sempre são restringidas por nossa própria constituição. Já a infelicidade é
muito menos difícil de experimentar. O sofrimento nos ameaça a partir de três
direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que
nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência;
do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição
esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os
outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais
penoso do que qualquer outro. Tendemos a encará-lo como uma espécie de
acréscimo gratuito, embora ele não possa ser menos fatidicamente inevitável do
que o sofrimento oriundo de outras fontes.
Não admira que, sob a pressão de todas
essas possibilidades de sofrimento, os homens se tenham acostumado a moderar
suas reivindicações de felicidade — tal como, na verdade, o próprio princípio
do prazer, sob a influência do mundo externo, se transformou no mais modesto
princípio da realidade —, que um homem pense ser ele próprio feliz,
simplesmente porque escapou à infelicidade ou sobreviveu ao sofrimento, e que,
em geral, a tarefa de evitar o sofrimento coloque a de obter prazer em segundo
plano. A reflexão nos mostra que é possível tentar a realização dessa tarefa
através de caminhos muito diferentes e que todos esses caminhos foram
recomendados pelas diversas escolas de sabedoria secular e postos em prática
pelos homens. Uma satisfação irrestrita de todas as necessidades
apresenta-se-nos como o método mais tentador de conduzir nossas vidas; isso,
porém, significa colocar o gozo antes da cautela, acarretando logo o seu
próprio castigo. Os outros métodos, em que a fuga do desprazer constitui o
intuito primordial, diferenciam-se de acordo com a fonte de desprazer para a
qual sua atenção está principalmente voltada. Alguns desses métodos são
extremados; outros, moderados; alguns são unilaterais; outros atacam o
problema, simultaneamente, em diversos pontos. Contra o sofrimento que pode
advir dos relacionamentos humanos, a defesa mais imediata é o isolamento
voluntário, o manter-se à distância das outras pessoas.
A felicidade passível de ser conseguida
através desse método é, como vemos, a felicidade da quietude. Contra o temível
mundo externo, só podemos defender-nos por algum tipo de afastamento dele, se
pretendermos solucionar a tarefa por nós mesmos. Há, é verdade, outro caminho,
e melhor: o de tornar-se membro da comunidade humana e, com o auxílio de uma
técnica orientada pela ciência, passar para o ataque à natureza e sujeitá-la à
vontade humana. Trabalha-se então com todos para o bem de todos. Contudo, os
métodos mais interessantes de evitar o sofrimento são os que procuram
influenciar o nosso próprio organismo. Em última análise, todo sofrimento nada
mais é do que sensação; só existe na medida em que o sentimos, e só o sentimos
como conseqüência de certos modos pelos quais nosso organismo está regulado.O mais
grosseiro, embora também o mais eficaz, desses métodos de influência é o
químico: a intoxicação.
Não creio que alguém compreenda
inteiramente o seu mecanismo; é fato, porém, que existem substâncias estranhas,
as quais, quando presentes no sangue ou nos tecidos, provocam em nós,
diretamente, sensações prazerosas, alterando, também, tanto as condições que
dirigem nossa sensibilidade, que nos tornamos incapazes de receber impulsos
desagradáveis. Os dois efeitos não só ocorrem de modo simultâneo, como parecem
estar íntima e mutuamente ligados. No entanto, é possível que haja substâncias
na química de nossos próprios corpos que apresentem efeitos semelhante pois
conhecemos pelo menos um estado patológico, a mania, no qual uma condição
semelhante à intoxicação surge sem administração de qualquer droga intoxicante.
Além disso, nossa vida psíquica normal apresenta oscilações entre uma liberação
de prazer relativamente fácil e outra comparativamente difícil, paralela à qual
ocorre uma receptividade, diminuída ou aumentada, ao desprazer. É extremamente
lamentável que até agora esse lado tóxico dos processos mentais tenha escapado
ao exame científico.
O serviço prestado pelos veículos
intoxicantes na luta pela felicidade e no afastamento da desgraça é tão altamente
apreciado como um benefício, que tanto indivíduos quanto povos lhes concederam
um lugar permanente na economia de sua libido. Devemos a tais veículos não só a
produção imediata de prazer, mas também um grau altamente desejado de
independência do mundo externo, pois sabe-se que, com o auxílio desse
‘amortecedor de preocupações’, é possível, em qualquer ocasião, afastar-se da
pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio, com melhores
condições de sensibilidade. Sabe-se igualmente que é exatamente essa
propriedade dos intoxicantes que determina o seu perigo e a sua capacidade de
causar danos. São responsáveis, em certas circunstâncias, pelo desperdício de
uma grande quota de energia que poderia ser empregada para o aperfeiçoamento do
destino humano.
A complicada estrutura de nosso aparelho
mental admite, contudo, um grande número de outras influências. Assim como a
satisfação do instinto equivale para nós à felicidade, assim também um grave
sofrimento surge em nós, caso o mundo externo nos deixe definhar, caso se
recuse a satisfazer nossas necessidades. Podemos, portanto, ter esperanças de
nos libertarmos de uma parte de nossos sofrimentos, agindo sobre os impulsos
instintivos. Esse tipo de defesa contra o sofrimento se aplica mais ao aparelho
sensorial; ele procura dominar as fontes internas de nossas necessidades. A
forma extrema disso é ocasionada pelo aniquilamento dos instintos, tal como
prescrito pela sabedoria do mundo peculiar ao Oriente e praticada pelo ioga.
Caso obtenha êxito, o indivíduo, é
verdade, abandona também todas as outras atividades: sacrifica a sua vida e,
por outra via, mais uma vez atinge apenas a felicidade da quietude. Seguimos o
mesmo caminho quando os nossos objetivos são menos extremados e simplesmente
tentamos controlar nossa vida instintiva. Nesse caso, os elementos
controladores são os agentes psíquicos superiores, que se sujeitaram ao
princípio da realidade. Aqui, a meta da satisfação não é, de modo algum,
abandonada, mas garante-se uma certa proteção contra o sofrimento no sentido de
que a não-satisfação não é tão penosamente sentida no caso dos instintos
mantidos sob dependência como no caso dos instintos desinibidos. Contra isso,
existe uma inegável diminuição nas potencialidades de satisfação. O sentimento de
felicidade derivado da satisfação de um selvagem impulso instintivo não domado
pelo ego é incomparavelmente mais intenso do que o derivado da satisfação de um
instinto que já foi domado. A irresistibilidade dos instintos perversos e,
talvez, a atração geral pelas coisas proibidas encontram aqui uma explicação
econômica.
Outra técnica para afastar o sofrimento
reside no emprego dos deslocamentos de libido que nosso aparelho mental
possibilita e através dos quais sua função ganha tanta flexibilidade. A tarefa
aqui consiste em reorientar os objetivos instintivos de maneira que eludam a
frustração do mundo externo. Para isso, ela conta com a assistência da
sublimação dos instintos.
Obtém-se o máximo quando se consegue
intensificar suficientemente a produção de prazer a partir das fontes do
trabalho psíquico e intelectual. Quando isso acontece, o destino pouco pode
fazer contra nós. Uma satisfação desse tipo, como, por exemplo, a alegria do
artista em criar, em dar corpo às suas fantasias, ou a do cientista em
solucionar problemas ou descobrir verdades, possui uma qualidade especial que,
sem dúvida, um dia poderemos caracterizar em termos metapsicológicos.
Atualmente, apenas de forma figurada podemos dizer que tais satisfações parecem
‘mais refinadas e mais altas’. Contudo, sua intensidade se revela muito tênue
quando comparada com a que se origina da satisfação de impulsos instintivos
grosseiros e primários; ela não convulsiona o nosso ser físico. E o ponto fraco
desse método reside em não ser geralmente aplicável, de uma vez que só é
acessível a poucas pessoas. Pressupõe a posse de dotes e disposições especiais
que, para qualquer fim prático, estão longe de serem comuns. E mesmo para os
poucos que os possuem, o método não proporciona uma proteção completa contra o
sofrimento.
Não cria uma armadura impenetrável contra
as investidas do destino e habitualmente falha quando a fonte do sofrimento é o
próprio corpo da pessoa.Enquanto esse procedimento já mostra claramente uma
intenção de nos tornar independentes do mundo externo pela busca da satisfação
em processos psíquicos internos, o procedimento seguinte apresenta esses
aspectos de modo ainda mais intenso. Nele, a distensão do vínculo com a
realidade vai mais longe; a satisfação é obtida através de ilusões, reconhecidas
como tais, sem que se verifique permissão para que a discrepância entre elas e
a realidade interfira na sua fruição. A região onde essas ilusões se originam é
a vida da imaginação; na época em que o desenvolvimento do senso de realidade
se efetuou, essa região foi expressamente isentada das exigências do teste de
realidade e posta de lado a fim de realizar desejos difíceis de serem levados a
termo. À frente das satisfações obtidas através da fantasia ergue-se a fruição
das obras de arte, fruição que, por intermédio do artista, é tornada acessível
inclusive àqueles que não são criadores. As pessoas receptivas à influência da
arte não lhe podem atribuir um valor alto demais como fonte de prazer e
consolação na vida. Não obstante, a suave narcose a que a arte nos induz, não
faz mais do que ocasionar um afastamento passageiro das pressões das
necessidades vitais, não sendo suficientemente forte para nos levar a esquecer
a aflição real.
Um outro processo opera de modo mais
energético e completo. Considera a realidade como a única inimiga e a fonte de
todo sofrimento, com a qual é impossível viver, de maneira que, se quisermos
ser de algum modo felizes, temos de romper todas as relações com ela. O eremita
rejeita o mundo e não quer saber de tratar com ele. Pode-se, porém, fazer mais
do que isso; pode-se tentar recriar o mundo, em seu lugar construir um outro
mundo, no qual os seus aspectos mais insuportáveis sejam eliminados e
substituídos por outros mais adequados a nossos próprios desejos. Mas quem quer
que, numa atitude de desafio desesperado, se lance por este caminho em busca da
felicidade, geralmente não chega a nada. A realidade é demasiado forte para
ele. Torna-se um louco; alguém que, a maioria das vezes, não encontra ninguém
para ajudá-lo a tornar real o seu delírio. Afirma-se, contudo, que cada um de
nós se comporta, sob determinado aspecto, como um paranóico, corrige algum
aspecto do mundo que lhe é insuportável pela elaboração de um desejo e introduz
esse delírio na realidade. Concede-se especial importância ao caso em que a
tentativa de obter uma certeza de felicidade e uma proteção contra o sofrimento
através de um remodelamento delirante da realidade, é efetuada em comum por um
considerável número de pessoas. As religiões da humanidade devem ser
classificadas entre os delírios de massa desse tipo. É desnecessário dizer que
todo aquele que partilha um delírio jamais o reconhece como tal.
Não pretendo ter feito uma enumeração
completa dos métodos pelos quais os homens se esforçam para conseguir a
felicidade e manter afastado o sofrimento; sei também que o material poderia
ter sido diferentemente disposto. Ainda não mencionei um processo — não por
esquecimento, mas porque nos interessará mais tarde, em relação a outro
assunto. E como se poderia esquecer, entre todas as outras, a técnica da arte
de viver? Ela se faz visível por uma notável combinação de aspectos
característicos. Naturalmente, visa também a tornar o indivíduo independente do
Destino (como é melhor chamá-lo) e, para esse fim, localiza a satisfação em
processos mentais internos, utilizando, ao proceder assim, a deslocabilidade da
libido que já mencionamos,ver [[1]]. Mas ela não volta as costas ao mundo
externo; pelo contrário, prende-se aos objetos pertencentes a esse mundo e
obtém felicidade de um relacionamento emocional com eles.
Tampouco se contenta em visar a uma fuga
do desprazer, uma meta, poderíamos dizer, de cansada resignação; passa por ela
sem lhe dar atenção e se aferra ao esforço original e apaixonado em vista de
uma consecução completa da felicidade. Na realidade, talvez se aproxime mais
dessa meta do que qualquer outro método. Evidentemente, estou falando da
modalidade de vida que faz do amor o centro de tudo, que busca toda satisfação
em amar e ser amado. Uma atitude psíquica desse tipo chega de modo bastante
natural a todos nós; uma das formas através da qual o amor se manifesta — o
amor sexual — nos proporcionou nossa mais intensa experiência de uma
transbordante sensação de prazer, fornecendo-nos assim um modelo para nossa
busca da felicidade.
Há, porventura, algo mais natural do que
persistirmos na busca da felicidade do modo como a encontramos pela primeira
vez? O lado fraco dessa técnica de viver é de fácil percepção, pois, do
contrário, nenhum ser humano pensaria em abandonar esse caminho da felicidade
por qualquer outro. É que nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento
como quando amamos, nunca tão desamparadamente infelizes como quando perdemos o
nosso objeto amado ou o seu amor. Isso, porém, não liquida com a técnica de
viver baseada no valor do amor como um meio de obter felicidade. Há muito mais
a ser dito a respeito. [Ver [1]].
Daqui podemos passar à consideração do
interessante caso em que a felicidade na vida é predominantemente buscada na
fruição da beleza, onde quer que esta se apresente a nossos sentidos e a nosso
julgamento — a beleza das formas e a dos gestos humanos, a dos objetos naturais
e das paisagens e a das criações artísticas e mesmo científicas. A atitude
estética em relação ao objetivo da vida oferece muito pouca proteção contra a
ameaça do sofrimento, embora possa compensá-lo bastante. A fruição da beleza
dispõe de uma qualidade peculiar de sentimento, tenuemente intoxicante. A
beleza não conta com um emprego evidente; tampouco existe claramente qualquer
necessidade cultural sua. Apesar disso, a civilização não pode dispensá-la.
Embora a ciência da estética investigue as condições sob as quais as coisas são
sentidas como belas, tem sido incapaz de fornecer qualquer explicação a respeito
da natureza e da origem da beleza, e, tal como geralmente acontece, esse
insucesso vem sendo escamoteado sob um dilúvio de palavras tão pomposas quanto
ocas. A psicanálise, infelizmente, também pouco encontrou a dizer sobre a
beleza. O que parece certo é sua derivação do campo do sentimento sexual. O
amor da beleza parece um exemplo perfeito de um impulso inibido em sua
finalidade.’Beleza’ e ‘atração’ são, originalmente, atributos do objeto
sexual. Vale a pena observar que os próprios órgãos genitais, cuja visão é
sempre excitante, dificilmente são julgados belos; a qualidade da beleza, ao
contrário, parece ligar-se a certos caracteres sexuais secundários.
A despeito da deficiência [de minha
enumeração, ver ([1])], aventurar-me-ei a algumas observações à guisa de
conclusão para nossa investigação. O programa de tornar-se feliz, que o
princípio do prazer nos impõe,ver [[1]],não pode ser realizado; contudo, não
devemos — na verdade, não podemos — abandonar nossos esforços de aproximá-lo da
consecução, de uma maneira ou de outra. Caminhos muito diferentes podem ser
tomados nessa direção, e podemos conceder prioridades quer ao aspecto positivo
do objetivo, obter prazer, quer ao negativo, evitar o desprazer. Nenhum desses
caminhos nos leva a tudo o que desejamos. A felicidade, no reduzido sentido em
que a reconhecemos como possível, constitui um problema da economia da libido
do indivíduo.
Não existe uma regra de ouro que se
aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo
específico ele pode ser salvo. Todos os tipos de diferentes fatores operarão a
fim de dirigir sua escolha. É uma questão de quanta satisfação real ele pode
esperar obter do mundo externo, de até onde é levado para tornar-se
independente dele, e, finalmente, de quanta força sente à sua disposição para
alterar o mundo, a fim de adaptá-lo a seus desejos. Nisso, sua constituição
psíquica desempenhará papel decisivo, independentemente das circunstâncias
externas. O homem predominantemente erótico dará preferência aos seus relacionamentos
emocionais com outras pessoas; o narcisista que tende a ser auto-suficiente,
buscará suas satisfações principais em seus processos mentais internos; o homem
de ação nunca abandonará o mundo externo, onde pode testar sua força. Quanto ao
segundo desses tipos, a natureza de seus talentos e a parcela de sublimação
instintiva a ele aberta decidirão onde localizará os seus interesses.
Qualquer escolha levada a um extremo
condena o indivíduo a ser exposto a perigos, que surgem caso uma técnica de
viver, escolhida como exclusiva, se mostre inadequada. Assim como o negociante
cauteloso evita empregar todo seu capital num só negócio, assim também, talvez,
a sabedoria popular nos aconselhe a não buscar a totalidade de nossa satisfação
numa só aspiração. Seu êxito jamais é certo, pois depende da convergência de
muitos fatores, talvez mais do que qualquer outro, da capacidade da
constituição psíquica em adaptar sua função ao meio ambiente e então explorar
esse ambiente em vista de obter um rendimento de prazer. Uma pessoa nascida com
uma constituição instintiva especialmente desfavorável e que não tenha
experimentado corretamente a transformação e a redisposição de seus componentes
libidinais indispensáveis às realizações posteriores, achará difícil obter
felicidade em sua situação externa,em especial se vier a se defrontar com
tarefas de certa dificuldade. Como uma última técnica de vida, pelo que menos
lhe trará satisfações substitutivas, é-lhe oferecida a fuga para a enfermidade
neurótica, fuga que geralmente efetua quando ainda é jovem. O homem que, em
anos posteriores, vê sua busca da felicidade resultar em nada ainda pode
encontrar consolo no prazer oriundo da intoxicação crônica, ou então se
empenhar na desesperada tentativa de rebelião que se observa na psicose.
A religião restringe esse jogo de escolha
e adaptação, desde que impõe igualmente a todos o seu próprio caminho para a
aquisição da felicidade e da proteção contra o sofrimento. Sua técnica consiste
em depreciar o valor da vida e deformar o quadro do mundo real de maneira
delirante — maneira que pressupõe uma intimidação da inteligência. A esse
preço, por fixá-las à força num estado de infantilismo psicológico e por
arrastá-las a um delírio de massa, a religião consegue poupar a muitas pessoas
uma neurose individual. Dificilmente, porém, algo mais. Existem, como dissemos,
muitos caminhos que podem levar à felicidade passível de ser atingida pelos
homens, mas nenhum que o faça com toda segurança. Mesmo a religião não consegue
manter sua promessa. Se, finalmente, o crente se vê obrigado a falar dos
‘desígnios inescrutáveis’ de Deus, está admitindo que tudo que lhe sobrou, como
último consolo e fonte de prazer possíveis em seu sofrimento, foi uma submissão
incondicional. E, se está preparado para isso, provavelmente poderia ter-se
poupado o détour que efetuou.
III
Até agora, nossa investigação sobre a
felicidade não nos ensinou quase nada que já não pertença ao conhecimento
comum. E, mesmo que passemos dela para o problema de saber por que é tão
difícil para o homem ser feliz, parece que não há maior perspectiva de aprender
algo novo. Já demos a resposta,ver [[1]] pela indicação das três fontes de que
nosso sofrimento provém: o poder superior da natureza, a fragilidade de nossos
próprios corpos e a inadequação das regras que procuram ajustar os
relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade.
Quanto às duas primeiras fontes, nosso julgamento não pode hesitar muito. Ele
nos força a reconhecer essas fontes de sofrimento e a nos submeter ao
inevitável. Nunca dominaremos completamente a natureza, e o nosso organismo
corporal, ele mesmo parte dessa natureza, permanecerá sempre como uma estrutura
passageira, com limitada capacidade de adaptação e realização. Esse reconhecimento
não possui um efeito paralisador. Pelo contrário, aponta a direção para a nossa
atividade. Se não podemos afastar todo sofrimento, podemos afastar um pouco
dele e mitigar outro tanto: a experiência de muitos milhares de anos nos
convenceu disso. Quanto à terceira fonte, a fonte social de sofrimento, nossa
atitude é diferente. Não a admitimos de modo algum; não podemos perceber por
que os regulamentos estabelecidos por nós mesmos não representam, ao contrário,
proteção e benefício para cada um de nós. Contudo, quando consideramos o quanto
fomos malsucedidos exatamente nesse campo de prevenção do sofrimento, surge em
nós a suspeita de que também aqui é possível jazer, por trás desse fato, uma
parcela de natureza inconquistável — dessa vez, uma parcela de nossa própria
constituição psíquica.
Quando começamos a considerar essa
possibilidade, deparamo-nos com um argumento tão espantoso, que temos de nos
demorar nele. Esse argumento sustenta que o que chamamos de nossa civilização é
em grande parte responsável por nossa desgraça e que seríamos muito mais
felizes se a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas. Chamo esse
argumento de espantoso porque, seja qual for a maneira por que possamos definir
o conceito de civilização, constitui fato incontroverso que todas as coisas que
buscamos a fim de nos protegermos contra as ameaças oriundas das fontes de
sofrimento, fazem parte dessa mesma civilização.
Como foi que tantas pessoas vieram a
assumir essa estranha atitude de hostilidade para com a civilização? Acredito
que seu fundamento consistiu numa longa e duradoura insatisfação com o estado
de civilização então existente e que, nessa base, se construiu uma condenação
dela, ocasionada por certos acontecimentos históricos específicos. Penso saber
quais foram a última e a penúltima dessas ocasiões. Não sou suficientemente
erudito para fazer remontar a origem de sua cadeia o mais distante possível na
história da espécie humana, mas um fator desse tipo, hostil à civilização, já
devia estar em ação na vitória do cristianismo sobre as religiões pagãs, de uma
vez que se achava intimamente relacionado à baixa estima dada à vida terrena
pela doutrina cristã. A penúltima dessas ocasiões se instaurou quando o
progresso das viagens de descobrimento conduziu ao contacto com povos e raças
primitivos. Em conseqüência de uma observação insuficiente e de uma visão
equivocada de seus hábitos e costumes, eles apareceram aos europeus como se
levassem uma vida simples e feliz, com poucas necessidades, um tipo de vida inatingível
por seus visitantes com sua civilização superior. A experiência posterior
corrigiu alguns desses julgamentos. Em muitos casos, os observadores haviam
erroneamente atribuído à ausência de exigências culturais complicadas o que de
fato era devido à generosidade da natureza e à facilidade com que as principais
necessidades humanas eram satisfeitas. A última ocasião nos é especialmente
familiar. Surgiu quando as pessoas tomaram conhecimento do mecanismo das
neuroses, que ameaçam solapar a pequena parcela de felicidade desfrutada pelos
homens civilizados. Descobriu-se que uma pessoa se torna neurótica porque não
pode tolerar a frustração que a sociedade lhe impõe, a serviço de seus ideais
culturais, inferindo-se disso que a abolição ou redução dessas exigências
resultaria num retorno a possibilidades de felicidade.
Existe ainda um fator adicional de
desapontamento. Durante as últimas gerações, a humanidade efetuou um progresso
extraordinário nas ciências naturais e em sua aplicação técnica, estabelecendo seu
controle sobre a natureza de uma maneira jamais imaginada. As etapas isoladas
desse progresso são do conhecimento comum, sendo desnecessário enumerá-las. Os
homens se orgulham de suas realizações e têm todo direito de se orgulharem.
Contudo, parecem ter observado que o poder recentemente adquirido sobre o
espaço e o tempo, a subjugação das forças da natureza, consecução de um anseio
que remonta a milhares de anos, não aumentou a quantidade de satisfação
prazerosa que poderiam esperar da vida e não os tornou mais felizes.
Reconhecendo esse fato, devemos contentar-nos em concluir que o poder sobre a
natureza não constitui a única precondição da felicidade humana, assim como não
é o único objetivo do esforço cultural.
Disso não devemos inferir que o progresso
técnico não tenha valor para a economia de nossa felicidade. Gostaríamos de
perguntar: não existe, então, nenhum ganho no prazer, nenhum aumento inequívoco
no meu sentimento de felicidade, se posso, tantas vezes quantas me agrade,
escutar a voz de um filho meu que está morando a milhares de quilômetros de
distância, ou saber, no tempo mais breve possível depois de um amigo ter
atingido seu destino, que ele concluiu incólume a longa e difícil viagem? Não
significa nada que a medicina tenha conseguido não só reduzir enormemente a
mortalidade infantil e o perigo de infecção para as mulheres no parto, como
também, na verdade, prolongar consideravelmente a vida média do homem
civilizado? Há uma longa lista que poderia ser acrescentada a esse tipo de
benefícios, que devemos à tão desprezada era dos progressos científicos e
técnicos. Aqui, porém, a voz da crítica pessimista se faz ouvir e nos adverte
que a maioria dessas satisfações segue o modelo do ‘prazer barato’ louvado pela
anedota: o prazer obtido ao se colocar a perna nua para fora das roupas de cama
numa fria noite de inverno e recolhê-la novamente.
Se não houvesse ferrovias para abolir as
distâncias, meu filho jamais teria deixado sua cidade natal e eu não precisaria
de telefone para ouvir sua voz; se as viagens marítimas transoceânicas não
tivessem sido introduzidas, meu amigo não teria partido em sua viagem por mar e
eu não precisaria de um telegrama para aliviar minha ansiedade a seu respeito.
Em que consiste a vantagem de reduzir a mortalidade infantil, se é precisamente
essa redução que nos impõe a maior coerção na geração de filhos, de tal maneira
que, considerando tudo, não criamos mais crianças do que nos dias anteriores ao
reino da higiene, ao passo que, ao mesmo tempo, criamos condições difíceis para
nossa vida sexual no casamento e provavelmente trabalhamos contra os efeitos
benéficos da seleção natural? Enfim, de que nos vale uma vida longa se ela se
revela difícil e estéril em alegrias, e tão cheia de desgraças que só a morte é
por nós recebida como uma libertação?
Parece certo que não nos sentimos
confortáveis na civilização atual, mas é muito difícil formar uma opinião sobre
se, e em que grau, os homens de épocas anteriores se sentiram mais felizes, e
sobre o papel que suas condições culturais desempenharam nessa questão. Sempre
tendemos a considerar objetivamente a aflição das pessoas — isto é, nos
colocarmos, com nossas próprias necessidades e sensibilidades, nas condições
delas, e então examinar quais as ocasiões que nelas encontraríamos para
experimentar felicidade ou infelicidade. Esse método de examinar as coisas, que
parece objetivo por ignorar as variações na sensibilidade subjetiva, é,
naturalmente, o mais subjetivo possível, de uma vez que coloca nossos próprios
estados mentais no lugar de quaisquer outros, por mais desconhecidos que estes
possam ser. A felicidade, contudo, é algo essencialmente subjetivo. Por mais
que nos retraiamos com horror de certas situações — a de um escravo de galé na
Antiguidade, a de um camponês durante a Guerra dos Trinta Anos, a de uma vítima
da Inquisição, a de um judeu à espera de um pogrom — para nós, sem embargo, é
impossível nos colocarmos no lugar dessas pessoas — adivinhar as modificações
que uma obtusidade original da mente, um processo gradual de embrutecimento, a
cessação das esperanças e métodos de narcotização mais grosseiros ou mais
refinados produziram sobre a receptividade delas às sensações de prazer e
desprazer. Além disso, no caso da possibilidade mais extrema de sofrimento,
dispositivos mentais protetores e especiais são postos em funcionamento.
Parece-me improdutivo levar adiante esse aspecto do problema.
Já é tempo de voltarmos nossa atenção para
a natureza dessa civilização, sobre cujo valor como veículo de felicidade foram
lançadas dúvidas. Não procuraremos uma fórmula que exprima essa natureza em
poucas palavras, enquanto não tivermos aprendido alguma coisa através de seu
exame. Mais uma vez, portanto, nos contentaremos em dizer que a palavra
‘civilização’ descreve a soma integral das realizações e regulamentos que
distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais, e que servem a dois
intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar os
seus relacionamentos mútuos. A fim de aprendermos mais, reuniremos os diversos
aspectos singulares da civilização, tal como se apresentam nas comunidades
humanas. Agindo desse modo, não hesitaremos em nos deixar guiar pelos hábitos
lingüísticos ou, como são também chamados, sentimento lingüístico, na convicção
de que assim estamos fazendo justiça e discernimentos internos que ainda
desafiam sua expressão em termos abstratos.
A primeira etapa é fácil. Reconhecemos
como culturais todas as atividades e recursos úteis aos homens, por lhes
tornarem a terra proveitosa, por protegerem-nos contra a violência das forças
da natureza, e assim por diante. Em relação a esse aspecto de civilização,
dificilmente pode haver qualquer dúvida. Se remontarmos suficientemente às
origens, descobriremos que os primeiros atos de civilização foram a utilização
de instrumentos, a obtenção do controle sobre o fogo e a construção de
habitações.Entre estes, o controle sobre o fogo sobressai como uma realização
extraordinária e sem precedentes, ao passo que os outros desbravaram caminhos
que o homem desde então passou a seguir, e cujo estímulo pode ser facilmente
percebido. Através de cada instrumento, o homem recria seus próprios órgãos,
motores ou sensoriais, ou amplia os limites de seu funcionamento. A potência
motora coloca forças gigantescas à sua disposição, as quais, como os seus
músculos, ele pode empregar em qualquer direção; graças aos navios e aos
aviões, nem a água nem o ar podem impedir seus movimentos; por meio de óculos
corrige os defeitos das lentes de seus próprios olhos; através do telescópio,
vê a longa distância; e por meio do microscópio supera os limites de
visibilidade estabelecidos pela estrutura de sua retina. Na câmara fotográfica,
criou um instrumento que retém as impressões visuais fugidias, assim como um
disco de gramofone retém as auditivas, igualmente fugidias; ambas são, no
fundo, materializações do poder que ele possui de rememoração, isto é, sua
memória. Com o auxílio do telefone, pode escutar a distâncias que seriam
respeitadas como inatingíveis mesmo num conto de fadas. A escrita foi, em sua
origem, a voz de uma pessoa ausente, e a casa para moradia constituiu um
substituto do útero materno, o primeiro alojamento, pelo qual, com toda
probabilidade, o homem ainda anseia, e no qual se achava seguro e se sentia à
vontade.
Essas coisas — que, através de sua ciência
e tecnologia, o homem fez surgir na Terra, sobre a qual, no princípio, ele
apareceu como um débilorganismo animal e onde cada indivíduo de sua espécie
deve, mais uma vez, fazer sua entrada (‘oh inch of nature’) como se fosse um
recém-nascido desamparado — essas coisas não apenas soam como um conto de
fadas, mas também constituem uma realização efetiva de todos — ou quase todos —
os desejos de contos de fadas. Todas essas vantagens ele as pode reivindicar como
aquisição cultural sua. Há muito tempo atrás, ele formou uma concepção ideal de
onipotência e onisciência que corporificou em seus deuses. A estes, atribuía
tudo que parecia inatingível aos seus desejos ou lhe era proibido. Pode-se
dizer, portanto, que esses deuses constituíam ideais culturais. Hoje, ele se
aproximou bastante da consecução desse ideal, ele próprio quase se tornou um
deus. É verdade que isso só ocorreu segundo o modo como os ideais são
geralmente atingidos, de acordo com o juízo geral da humanidade. Não
completamente; sob certos aspectos, de modo algum; sob outros, apenas pela
metade. O homem, por assim dizer, tornou-se uma espécie de “Deus de prótese”.
Quando faz uso de todos os seus órgãos auxiliares, ele é verdadeiramente
magnífico; esses órgãos, porém, não cresceram nele e, às vezes, ainda lhe
causam muitas dificuldades. Não obstante, ele tem o direito de se consolar
pensando que esse desenvolvimento não chegará ao fim exatamente no ano de 1930
A.D. As épocas futuras trarão com elas novos e provavelmente inimagináveis
grandes avanços nesse campo da civilização e aumentarão ainda mais a semelhança
do homem com Deus. No interesse de nossa investigação, contudo, não
esqueceremos que atualmente o homem não se sente feliz em seu papel de semelhante
a Deus.
Reconhecemos, então, que os países
atingiram um alto nível de civilização quando descobrimos que neles tudo o que
pode ajudar na exploração da Terra pelo homem e na sua proteção contra as
forças da natureza tudo, emsuma, que é útil para ele — está disponível e é
passível de ser conseguido. Nesses países, os rios que ameaçam inundar as
terras são regulados em seu fluxo, e sua água é irrigada através de canais para
lugares onde ela é escassa. O solo é cuidadosamente cultivado e plantado com a
vegetação apropriada, e a riqueza mineral subterrânea é assiduamente trazida à
superfície e modelada em implementos e utensílios indispensáveis. Os meios de
comunicação são amplos, rápidos e dignos de confiança. Os animais selvagens e
perigosos foram exterminados e a criação de animais domésticos floresce. Além
dessas, porém, exigimos outras coisas da civilização, sendo digno de nota o
fato de esperarmos encontrá-las realizadas nesses mesmos países. Como se
estivéssemos procurando repudiar a primeira exigência que fizemos,
reconhecemos, igualmente, como um sinal de civilização, verificar que as
pessoas também orientam suas preocupações para aquilo que não possui qualquer
valor prático, para o que não é lucrativo: por exemplo, os espaços verdes
necessários a uma cidade, como playgrounds e reservatórios de ar fresco, são
também ornados de jardins e as janelas das casas, decoradas com vasos de
flores. De imediato, constatamos que essa coisa não lucrativa que esperamos que
a civilização valorize, é a beleza.
Exigimos que o homem civilizado reverencie
a beleza, sempre que a perceba na natureza ou sempre que a crie nos objetos de
seu trabalho manual, na medida em que é capaz disso. Mas isso está longe de
exaurir nossas exigências quanto à civilização. Esperamos, ademais, ver sinais
de asseio e de ordem. Não concebemos uma cidade do interior da Inglaterra, na
época de Shakespeare, como possuidora de um alto nível cultural, quando lemos
que havia um grande monte de esterco em frente à casa de seu pai, em Stratford;
também ficamos indignados e chamamos de ‘bárbaro’ (o oposto de civilizado),
quando nos deparamos com as veredas do Wiener Wald cobertas de papéis velhos. A
sujeira de qualquer espécie nos parece incompatível com a civilização. Da mesma
forma, estendemos nossa exigência de limpeza ao corpo humano. Ficamos
estupefatos ao saber que o emanava um odor insuportável,
meneamos a cabeça quando, na Isola Bella nos é mostrada a minúscula bacia
em que Napoleão se lavava todas as manhãs. Na verdade, não nos surpreende a
idéia de estabelecer o emprego do sabão como um padrão real de civilização.
Isso é igualmente verdadeiro quanto à ordem. Assim como a limpeza, ela só se
aplica às obrasdo homem. Contudo, ao passo que não se espera encontrar asseio
na natureza, a ordem, pelo contrário, foi imitada a partir dela.
A observação que o homem fez das grandes
regularidades astronômicas não apenas o muniu de um modelo para a introdução da
ordem em sua vida, mas também lhe forneceu os primeiros pontos de partida para
proceder desse modo. A ordem é uma espécie de compulsão a ser repetida,
compulsão que, ao se estabelecer um regulamento de uma vez por todas, decide
quando, onde e como uma coisa será efetuada, e isso de tal maneira que, em
todas as circunstâncias semelhantes, a hesitação e a indecisão nos são
poupadas. Os benefícios da ordem são incontestáveis. Ela capacita os homens a
utilizarem o espaço e o tempo para seu melhor proveito, conservando ao mesmo
tempo as forças psíquicas deles. Deveríamos ter o direito de esperar que ela
houvesse ocupado seu lugar nas atividades humanas desde o início e sem
dificuldade, e podemos ficar admirados de que isso não tenha acontecido, de
que, pelo contrário, os seres humanos revelem uma tendência inata para o
descuido, a irregularidade e a irresponsabilidade em seu trabalho, e de que
seja necessário um laborioso treinamento para que aprendam a seguir o exemplo
de seus modelos celestes.
Evidentemente, a beleza, a limpeza e a
ordem ocupam uma posição especial entre as exigências da civilização. Ninguém
sustentará que elas sejam tão importantes para a vida quanto o controle sobre
as forças da natureza ou quanto alguns outros fatores com que ainda nos
familiarizaremos. No entanto, ninguém procurará colocá-las em segundo plano,
como se não passassem de trivialidades. Que a civilização não se faz acompanhar
apenas pelo que é útil, já ficou demonstrado pelo exemplo da beleza, que não
omitimos entre os interesses da civilização. A utilidade da ordem é
inteiramente evidente. Quando à limpeza, devemos ter em mente aquilo que também
a higiene exige de nós, e podemos supor que, mesmo anteriormente à profilaxia
científica, a conexão entre as duas não era de todo estranha ao homem. Contudo,
a utilidade não explica completamente esses esforços; deve existir algo mais
que se encontre em ação.
Nenhum aspecto, porém, parece caracterizar
melhor a civilização do que sua estima e seu incentivo em relação às mais
elevadas atividades mentais do homem — suas realizações intelectuais,
científicas e artísticas — e o papel fundamental que atribui às idéias na vida
humana. Entre essas idéias, em primeiro lugar se encontram os sistemas
religiosos, cuja complicada estrutura já me esforcei por esclarecer em outra
oportunidade. A seguir, vêm as especulações da filosofia e, finalmente, o que
se poderia chamar de ‘ideais’do homem — suas idéias a respeito de uma possível
perfeição dos indivíduos, dos povos, ou da humanidade como um todo, e as
exigências estabelecidas com fundamento nessas idéias. O fato de essas criações
do homem não serem mutuamente independentes, mas, pelo contrário, se acharem
estreitamente entrelaçadas, aumenta a dificuldade não apenas de descrevê-las,
como também de traçar sua derivação psicológica. Se, de modo bastante geral,
supusermos que a força motivadora de todas as atividades humanas é um esforço
desenvolvido no sentido de duas metas confluentes, a de utilidade e a de
obtenção de prazer, teremos de supor que isso também é verdadeiro quanto às
manifestações da civilização que acabamos de examinar, embora só seja
facilmente visível nas atividades científicas e estéticas.
Não se pode, porém, duvidar de que as
outras atividades também correspondem a fortes necessidades dos homens — talvez
a necessidades que só se achem desenvolvidas numa minoria. Tampouco devemos
permitir sermos desorientados por juízos de valor referentes a qualquer
religião, qualquer sistema filosófico ou qualquer ideal. Quer pensemos
encontrar neles as mais altas realizações do espírito humano, quer os
deploremos como aberrações, não podemos deixar de reconhecer que onde eles se
acham presentes, e, em especial, onde eles são dominantes, está implícito um
alto nível de civilização.
Resta avaliar o último, mas decerto não o
menos importante, dos aspectos característicos da civilização: a maneira pela
qual os relacionamentos mútuos dos homens, seus relacionamentos sociais, são
regulados — relacionamentos estes que afetam uma pessoa como próximo, como
fonte de auxílio, como objeto sexual de outra pessoa, como membro de uma
família e de um Estado.
Aqui, é particularmente difícil manter-se
isento de exigências ideais específicas e perceber aquilo que é civilizado em
geral. Talvez possamos começar pela explicação de que o elemento de civilização
entra em cena com a primeira tentativa de regular esses relacionamentos
sociais. Se essa tentativa não fosse feita, os relacionamentos ficariam
sujeitos à vontade arbitrária do indivíduo, o que equivale a dizer que o homem
fisicamente mais forte decidiria a respeito deles no sentido de seus próprios
interesses e impulsos instintivos. Nada se alteraria se, por sua vez, esse
homem forte encontrasse alguém mais forte do que ele. A vida humana em comum só
se torna possível quando se reúne uma maioria mais forte do que qualquer
indivíduo isolado e que permanece unida contra todos os indivíduos isolados. O
poder dessa comunidade é então estabelecido como ‘direito’, em oposição ao
poder do indivíduo, condenado como ‘força bruta’. A substituição do poder do
indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da
civilização. Sua essência reside no fato de os membros da comunidade se
restringirem em suas possibilidades de satisfação,ao passo que o indivíduo
desconhece tais restrições. A primeira exigência da civilização, portanto, é a
da justiça, ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será
violada em favor de um indivíduo. Isso não acarreta nada quanto ao valor ético
de tal lei. O curso ulterior do desenvolvimento cultural parece tender no
sentido de tornar a lei não mais expressão da vontade de uma pequena comunidade
— uma casta ou camada de uma população ou grupo racial —, que, por sua vez, se
comporta como um indivíduo violento frente a outros agrupamentos de pessoas,
talvez mais numerosos. O resultado final seria um estatuto legal para o qual
todos — exceto os incapazes de ingressar numa comunidade — contribuíram com um
sacrifício de seus instintos, que não deixa ninguém — novamente com a mesma
exceção — à mercê da força bruta.
A liberdade do indivíduo não constitui um
dom da civilização. Ela foi maior antes da existência de qualquer civilização,
muito embora, é verdade, naquele então não possuísse, na maior parte, valor, já
que dificilmente o indivíduo se achava em posição de defendê-la. O
desenvolvimento da civilização impõe restrições a ela, e a justiça exige que
ninguém fuja a essas restrições. O que se faz sentir numa comunidade humana
como desejo de liberdade pode ser sua revolta contra alguma injustiça
existente, e desse modo esse desejo pode mostrar-se favorável a um maior desenvolvimento
da civilização; pode permanecer compatível com a civilização. Entretanto, pode
também originar-se dos remanescentes de sua personalidade original, que ainda
não se acha domada pela civilização, e assim nela tornar-se a base da
hostilidade à civilização. O impulso de liberdade, portanto, é dirigido contra
formas e exigências específicas da civilização ou contra a civilização em
geral. Não parece que qualquer influência possa induzir o homem a transformar
sua natureza na de uma térmita. Indubitavelmente, ele sempre defenderá sua
reivindicação à liberdade individual contra a vontade do grupo. Grande parte
das lutas da humanidade centralizam-se em torno da tarefa única de encontrar
uma acomodação conveniente — isto é, uma acomodação que traga felicidade —
entre essa reivindicação do indivíduo e as reivindicações culturais do grupo, e
um dos problemas que incide sobre o destino da humanidade é o de saber se tal
acomodação pode ser alcançada por meio de alguma forma específica de
civilização ou se esse conflito é irreconciliável.
Permitindo que o sentimento comum
assumisse o papel de nosso guia quanto a decidir sobre quais aspectos da vida
humana devem ser encarados como civilizados, conseguimos esboçar uma impressão
bastante clara do quadro geral da civilização; contudo, é verdade que, até
agora, não descobrimos nada que já não fosse universalmente conhecido. Ao mesmo
tempo, tivemos o cuidado de não concordar com o preconceito de que civilização
ésinônimo de aperfeiçoamento, de que constitui a estrada para a perfeição,
preordenada para os homens. Agora, porém, apresenta-se um ponto de vista que
pode conduzir numa direção diferente. O desenvolvimento da civilização nos
aparece como um processo peculiar que a humanidade experimenta e no qual
diversas coisas nos impressionam como familiares.
Podemos caracterizar esse processo
referindo-o às modificações que ele ocasiona nas habituais disposições
instintivas dos seres humanos, para satisfazer o que, em suma, constitui a
tarefa econômica de nossas vidas. Alguns desses instintos são empregados de tal
maneira que, em seu lugar, aparece algo que, num indivíduo, descrevemos como um
traço de caráter. O exemplo mais notável desse processo é encontrado no
erotismo anal das crianças. Seu interesse original pela função excretória, por
seus órgãos e produtos, transforma-se, no decurso do crescimento, num grupo de
traços que nos são familiares, tais como a parcimônia, o sentido da ordem e da
limpeza — qualidades que, embora valiosas e desejáveis em si mesmas, podem ser intensificadas
até se tornarem acentuadamente dominantes e produzirem o que se chama de
caráter anal.
Não sabemos como isso acontece, mas não há
dúvida sobre a exatidão da descoberta. Ora, vimos que a ordem e a limpeza
constituem exigências importantes de civilização, embora sua necessidade vital
não seja muito aparente, da mesma forma que revelam indesejáveis como fonte de
prazer. Nesse ponto, não podemos deixar de ficar impressionados pela semelhança
existente entre os processos civilizatórios e o desenvolvimento libidinal do
indivíduo. Outros instintos [além do erotismo anal] são induzidos a deslocar as
condições de sua satisfação, a conduzi-las para outros caminhos. Na maioria dos
casos, esse processo coincide com o da sublimação (dos fins instintivos), com
que nos achamos familiarizados; noutros, porém, pode diferenciar-se dele. A
sublimação do instinto constitui um aspecto particularmente evidente do
desenvolvimento cultural; é ela que torna possível às atividades psíquicas
superiores, científicas, artísticas ou ideológicas, o desempenho de um papel
tão importante na vida civilizada. Se nos rendêssemos a uma primeira impressão,
diríamos que a sublimação constitui uma vicissitude que foi imposta aos
instintos de forma total pela civilização. Seria prudente refletir um pouco
mais sobre isso. Em terceiro lugar, finalmente — e isso parece o mais
importante de tudo —, é impossível desprezar o ponto até o qual a civilização é
construída sobre uma renúncia ao instinto, o quanto ela pressupõe exatamente a
não-satisfação (pela opressão, repressão, ou algum outro meio?) de instintos
poderosos. Essa ‘frustração cultural’ domina o grande campo dos relacionamentos
sociais entre os seres humanos. Como já sabemos, é a causa da hostilidade
contra a qual todas as civilizações têm de lutar. Também ela fará exigências
severas à nossa obra científica, e muito teremos a explicar aqui. Não é fácil
entender como pode ser possível privar de satisfação um instinto. Não se faz
isso impunemente. Se a perda não for economicamente compensada, pode-se ficar
certo de que sérios distúrbios decorrerão disso.
Mas, se quisermos saber qual o valor que
pode ser atribuído à nossa opinião de que o desenvolvimento da civilização
constitui um processo especial, comparável à maturação normal do indivíduo,
temos, claramente, de atacar o problema. Devemos perguntar-nos a que influência
o desenvolvimento da civilização deve sua origem, como ela surgiu e o que
determinou o seu curso.
IV
A tarefa parece imensa e, frente a
ela, é natural que se sinta falta de confiança. Mas aqui estão as conjecturas
que pude efetuar.
Depois que o homem primevo descobriu que
estava literalmente em suas mãos melhorar a sua sorte na Terra através do
trabalho, não lhe pode ter sido indiferente que outro homem trabalhasse com ele
ou contra ele. Esse outro homem adquiriu para ele o valor de um companheiro de
trabalho, com quem era útil conviver. Em época ainda anterior, em sua
pré-história simiesca, o homem adotara o hábito de formar famílias, e
provavelmente os membros de sua família foram os seus primeiros auxiliares.
Pode-se supor que a formação de famílias deveu-se ao fato de ter ocorrido um
momento em que a necessidade de satisfação genital não apareceu mais como um
hóspede que surge repentinamente e do qual, após a partida, não mais se ouve
falar por longo tempo, mas que, pelo contrário, se alojou como um inquilino
permanente. Quando isso aconteceu, o macho adquiriu um motivo para conservar a
fêmea junto de si, ou, em termos mais gerais, seus objetos sexuais, a seu lado,
ao passo que a fêmea, não querendo separar-se de seus rebentos indefesos,
viu-se obrigada, no interesse deles, a permanecer com o macho mais forte. Na
família primitiva, falta ainda uma característica essencial da civilização. A
vontade arbitrária de seu chefe, o pai, era irrestrita.
Em Totem e Tabu [1912-13], tentei
demonstrar o caminho que vai dessa família à etapa subseqüente, a da vida
comunal, sob a forma de grupos de irmãos. Sobrepujando o pai, os filhos
descobriram que uma combinação pode ser mais forte do que um indivíduo isolado.
A cultura totêmica baseia-se nas restrições que os filhos tiveram de impor-se
mutuamente, a fim de conservar esse novo estado de coisas. Os preceitos do tabu
constituíram o primeiro ‘direito’ ou ‘lei’. A vida comunitária dos seres
humanos teve, portanto, um fundamento duplo: a compulsão para o trabalho,
criada pela necessidade externa, e o poder do amor, que fez o homem relutar em
privar-se de seu objeto sexual — a mulher — e a mulher, em privar-se daquela
parte de si própria que dela fora separada — seu filho. Eros e Ananke [Amor e
Necessidade] se tornaram os pais também da civilização humana. O primeiro
resultado da civilização foi que mesmo um número bastante grande de pessoas
podia agora viver reunido numa comunidade. E, como esses dois grandes poderes
cooperaram para isso, poder-se-ia esperar que o desenvolvimento ulterior da
civilização progredisse sem percalços no sentido de um controle ainda melhor
sobre o mundo externo e no de uma ampliação do número de pessoasincluídas na
comunidade. É difícil compreender como essa civilização pode agir sobre os seus
participantes de outro modo senão o de torná-los felizes.
Antes de continuarmos a indagar sobre de
que direção uma interferência poderia surgir, o reconhecimento do amor como um
dos fundamentos da civilização pode servir de pretexto para uma digressão que
nos capacitará a preencher uma lacuna por nós deixada num exame anterior,ver
[[1]]. Mencionáramos então que a descoberta feita pelo homem de que o amor
sexual (genital) lhe proporcionava as mais intensas experiências de satisfação,
fornecendo-lhe, na realidade, o protótipo de toda felicidade, deve ter-lhe
sugerido que continuasse a buscar a satisfação da felicidade em sua vida
seguindo o caminho das relações sexuais e que tornasse o erotismo genital o
ponto central dessa mesma vida. Prosseguimos dizendo que, fazendo assim, ele se
tornou dependente, de uma forma muito perigosa, de uma parte do mundo externo,
isto é, de seu objeto amoroso escolhido, expondo-se a um sofrimento extremo,
caso fosse rejeitado por esse objeto ou o perdesse através da infidelidade ou
da morte. Por essa razão, os sábios de todas as épocas nos advertiram
enfaticamente contra tal modo de vida; apesar disso, ele não perdeu seu
atrativo para grande número de pessoas.
Apesar de tudo, uma pequena minoria de
pessoas acha-se capacitada, por sua constituição, a encontrar felicidade no
caminho do amor. Fazem-se necessárias, porém, alterações mentais de grande
alcance na função do amor antes que isso possa acontecer. Essas pessoas se
tornam independentes da aquiescência de seu objeto, deslocando o que mais
valorizam do ser amado para o amar; protegem-se contra a perda do objeto,
voltando seu amor, não para objetos isolados, mas para todos os homens, e, do
mesmo modo, evitam as incertezas e as decepções do amor genital, desviando-se
de seus objetivos sexuais e transformando o instinto num impulso com uma
finalidade inibida. Ocasionam assim, nelas mesmas, um estado de sentimento
imparcialmente suspenso, constante e afetuoso, que tem pouca semelhança externa
com as tempestuosas agitações do amor genital, do qual, não obstante, se
deriva. Talvez São Francisco de Assis tenha sido quem mais longe foi na
utilização do amor para beneficiar um sentimento interno de felicidade. Além
disso, aquilo que identificamos como sendo uma das técnicas para realizar o
princípio do prazer foi amiúde vinculado à religião; essa vinculação pode
residir nas remotas regiões em que a distinção entre o ego e os objetos, ou
entre os próprios objetos, é desprezada. De acordo com determinado ponto de
vista ético, cuja motivação mais profunda se nos tornará clara dentro em pouco,
essa disposição para o amor universal pela humanidade e pelo mundo representa o
ponto mais alto que o homem pode alcançar. Mesmo nessa etapapreliminar da
discussão, gostaria de apresentar minhas duas principais objeções a essa
opinião. Um amor que não discrimina me parece privado de uma parte de seu
próprio valor, por fazer uma injustiça a seu objeto, e, em segundo lugar, nem
todos os homens são dignos de amor.
O amor que fundou a família continua a
operar na civilização, tanto em sua forma original, em que não renuncia à
satisfação sexual direta, quanto em sua forma modificada, como afeição inibida
em sua finalidade. Em cada uma delas, continua a realizar sua função de reunir
consideráveis quantidades de pessoas, de um modo mais intensivo do que o que
pode ser efetuado através do interesse pelo trabalho em comum. A maneira
descuidada com que a linguagem utiliza a palavra ‘amor’ conta com uma
justificação genética. As pessoas dão o nome de ‘amor’ ao relacionamento entre
um homem e uma mulher cujas necessidades genitais os levaram a fundar uma
família; também dão esse nome aos sentimentos positivos existentes entre pais e
filhos, e entre os irmãos e as irmãs de uma família, embora nós sejamos
obrigados a descrever isso como ‘amor inibido em sua finalidade’ ou ‘afeição’.
O amor com uma finalidade inibida foi de fato, originalmente, amor plenamente
sensual, e ainda o é no inconsciente do homem. Ambos — o amor plenamente
sensual e o amor inibido em sua finalidade — estendem-se exteriormente à
família e criam novos vínculos com pessoas anteriormente estranhas. O amor
genital conduz à formação de novas famílias, e o amor inibido em sua
finalidade, a ‘amizades’ que se tornam valiosas, de um ponto de vista cultural,
por fugirem a algumas das limitações do amor genital, como, por exemplo, à sua
exclusividade. No decurso do desenvolvimento, porém, a relação do amor com a
civilização perde sua falta de ambigüidade. Por um lado, o amor se coloca em
oposição aos interesses da civilização; por outro, esta ameaça o amor com
restrições substanciais.
Essa incompatibilidade entre amor e
civilização parece inevitável e sua razão não é imediatamente reconhecível.
Expressa-se a princípio como um conflito entre a família e a comunidade maior a
que o indivíduo pertence. Já percebemos que um dos principais esforços da
civilização é reunir as pessoas em grandes unidades. Mas a família não abandona
o indivíduo. Quanto mais estreitamente os membros de uma família se achem
mutuamente ligados, com mais freqüência tendem a se apartarem dos outros e mais
difícil lhes é ingressar no círculo mais amplo da cidade. O modo de vida em
comum que é filogeneticamente o mais antigo, e o único que existe na infância,
não se deixará sobrepujar pelo modo cultural de vida adquirido depois.
Separar-se da família torna-se umatarefa com que todo jovem se defronta, e a
sociedade freqüentemente o auxilia na solução disso através dos ritos de
puberdade e de iniciação. Ficamos com a impressão de que se trata de
dificuldades inerentes a todo desenvolvimento psíquico — e, em verdade, no
fundo, a todo desenvolvimento orgânico.
Além do mais, as mulheres logo se opõem à
civilização e demonstram sua influência retardante e coibidora — as mesmas
mulheres que, de início, estabeleceram os fundamentos da civilização pelas
reivindicações de seu amor. As mulheres representam os interesses da família e
da vida sexual. O trabalho de civilização tornou-se cada vez mais um assunto
masculino, confrontando os homens com tarefas cada vez mais difíceis e
compelindo-os a executarem sublimações instintivas de que as mulheres são pouco
capazes. Já que o homem não dispõe de quantidades ilimitadas de energia
psíquica, tem de realizar suas tarefas efetuando uma distribuição conveniente
de sua libido. Aquilo que emprega para finalidades culturais, em grande parte o
extrai das mulheres e da vida sexual. Sua constante associação com outros
homens e a dependência de seus relacionamentos com eles o alienam inclusive de
seus deveres de marido e de pai. Dessa maneira, a mulher se descobre relegada a
segundo plano pelas exigências da civilização e adota uma atitude hostil para
com ela.
A tendência por parte da civilização em
restringir a vida sexual não é menos clara do que sua outra tendência em
ampliar a unidade cultural. Sua primeira fase, totêmica, já traz com ela a
proibição de uma escolha incestuosa de objeto, o que constitui, talvez, a
mutilação mais drástica que a vida erótica do homem em qualquer época já
experimentou. Os tabus, as leis e os costumes impõem novas restrições, que
influenciam tanto homens quanto mulheres. Nem todas as civilizações vão
igualmente longe nisso, e a estrutura econômica da sociedade também influencia
a quantidade de liberdade sexual remanescente. Aqui, como já sabemos, a
civilização está obedecendo às leis da necessidade econômica, visto que uma
grande quantidade da energia psíquica que ela utiliza para seus próprios fins
tem de ser retirada da sexualidade.
Com relação a isso, a civilização se
comporta diante da sexualidade da mesma forma que um povo, ou uma de suas
camadas sociais, procede diante de outros que estão submetidos à sua
exploração. O temor a uma revolta por parte dos elementos oprimidos a conduz à
utilização de medidas de precaução mais estritas. Um ponto culminante nesse
desenvolvimento foi atingido em nossa civilização ocidental européia. Uma
comunidade cultural acha-se, do ponto de vista psicológico, perfeitamente
justificada em começar por proscrever as manifestações da vida sexual das
crianças, pois não haveria perspectiva de submeter os apetites sexuais dos
adultos, se os fundamentospara isso não tivessem sido lançados na infância.
Contudo, uma comunidade desse tipo de modo algum pode ser justificada se vai
até o ponto de realmente repudiar essas manifestações facilmente demonstráveis
e, na verdade, notáveis. Quanto ao indivíduo sexualmente maduro, a escolha de
um objeto restringe-se ao sexo oposto, estando as satisfações extragenitais, em
sua maioria, proibidas como perversão. A exigência, demonstrada nessas
proibições, de que haja um tipo único de vida sexual para todos, não leva em
consideração as dessemelhanças, inatas ou adquiridas, na constituição sexual
dos seres humanos; cerceia, em bom número deles, o gozo sexual, tornando-se
assim fonte de grave injustiça.
O resultado de tais medidas restritivas
poderia ser que, nas pessoas normais — que não se acham impedidas por sua
constituição —, a totalidade dos seus interesses sexuais fluísse, sem perdas,
para os canais que são deixados abertos. No entanto, o próprio amor genital
heterossexual, que permaneceu isento de proscrição, é restringido por outras
limitações, apresentadas sob a forma da insistência na legitimidade e na
monogamia. A civilização atual deixa claro que só permite os relacionamentos
sexuais na base de um vínculo único e indissolúvel entre um só homem e uma só
mulher, e que não é de seu agrado a sexualidade como fonte de prazer por si própria,
só se achando preparada para tolerá-la porque, até o presente, para ela não
existe substituto como meio de propagação da raça humana.
Naturalmente, isso configura um quadro
extremado. Todos sabem que ele se mostrou inxeqüível, mesmo por períodos muito
breves. Apenas os fracos se submeteram a uma usurpação tão ampla de sua
liberdade sexual, e as naturezas mais fortes só o fizeram mediante uma condição
compensatória, que será posteriormente mencionada. A sociedade civilizada
viu-se obrigada a silenciar sobre muitas transgressões que, segundo os seus
próprios princípios, deveria ter punido. Mas, por um outro lado, não devemos
errar, supondo que, por não alcançar todos os seus objetivos, uma atitude desse
tipo por parte da sociedade seja inteiramente inócua. A vida sexual do homem
civilizado encontra-se, não obstante, severamente prejudicada; dá, às vezes, a
impressão de estar em processo de involução enquanto função, tal como parece
acontecer com nossos dentes e cabelos. Provavelmente, justifica-se supor que
sua importância enquanto fonte de sentimentos de felicidade e, portanto, na
realização de nosso objetivo na vida, diminuiu sensivelmente. Às vezes, somos
levados a pensar que nãose trata apenas da pressão da civilização, mas de algo
da natureza da própria função que nos nega satisfação completa e nos incita a
outros caminhos. Isso pode estar errado; é difícil decidir.
V
O trabalho psicanalítico nos mostrou que
as frustrações da vida sexual são precisamente aquelas que as pessoas
conhecidas como neuróticas não podem tolerar. O neurótico cria em seus sintomas
satisfações substitutivas para si, e estas ou lhe causam sofrimento em si
próprias, ou se lhe tornam fontes de sofrimento pela criação de dificuldades em
seus relacionamentos com o meio ambiente e a sociedade a que pertence. Esse
último fato é fácil de compreender; o primeiro nos apresenta um novo problema.
A civilização, porém, exige outros sacrifícios, além do da satisfação sexual.
Abordamos a dificuldade do desenvolvimento
cultural como sendo uma dificuldade geral de desenvolvimento, fazendo sua
origem remontar à inércia da libido, à falta de inclinação desta para abandonar
uma posição antiga por outra nova. Dizemos quase a mesma coisa quando fazemos a
antítese entre civilização e sexualidade derivar da circunstância de o amor
sexual constituir um relacionamento entre dois indivíduos, no qual um terceiro
só pode ser supérfluo ou perturbador, ao passo que a civilização depende de
relacionamentos entre um considerável número de indivíduos. Quando um
relacionamento amoroso se encontra em seu auge, não resta lugar para qualquer
outro interesse pelo ambiente; um casal de amantes se basta a si mesmo; sequer
necessitam do filho que têm em comum para torná-los felizes. Em nenhum outro
caso Eros revela tão claramente o âmago do seu ser, o seu intuito de, de mais
de um, fazer um único; contudo, quando alcança isso da maneira proverbial, ou
seja, através do amor de dois seres humanos, recusa-se a ir além.
Até aqui, podemos imaginar perfeitamente
uma comunidade cultural que consista em indivíduos duplos como este, que,
libidinalmente satisfeitos em si mesmos, se vinculem uns aos outros através dos
elos do trabalho comum e dos interesses comuns. Se assim fosse, a civilização
não teria que extrair energia alguma da sexualidade. Contudo, esse desejável
estado de coisas não existe, nem nunca existiu. A realidade nos mostra que a
civilização não se contenta com as ligações que até agora lhe concedemos. Visa
a unir entre si os membros da comunidade também de maneira libidinal e, para
tanto, emprega todos os meios. Favorece todos os caminhos pelos quais
identificações fortes possam ser estabelecidas entre os membros da comunidade
e, na mais ampla escala, convoca a libido inibida em sua finalidade, demodo a
fortalecer o vínculo comunal através das relações de amizade. Para que esses
objetivos sejam realizados, faz-se inevitável uma restrição à vida sexual. Não
conseguimos, porém, entender qual necessidade força a civilização a tomar esse
caminho, necessidade que provoca o seu antagonismo à sexualidade. Deve haver
algum fator de perturbação que ainda não descobrimos.
A pista pode ser fornecida por uma das
exigências ideais, tal como as denominamos, da sociedade civilizada. Diz ela:
‘Amarás a teu próximo como a ti mesmo.’ Essa exigência, conhecida em todo o
mundo, é, indubitavelmente, mais antiga que o cristianismo, que a apresenta
como sua reivindicação mais gloriosa. No entanto, ela não é decerto
excessivamente antiga; mesmo já em tempos históricos, ainda era estranha à
humanidade. Se adotarmos uma atitude ingênua para com ela, como se a
estivéssemos ouvindo pela primeira vez, não poderemos reprimir um sentimento de
surpresa e perplexidade. Por que deveremos agir desse modo? Que bem isso nos
trará? Acima de tudo, como conseguiremos agir desse modo? Como isso pode ser
possível? Meu amor, para mim, é algo de valioso, que eu não devo jogar fora sem
reflexão.
A máxima me impõe deveres para cujo
cumprimento devo estar preparado e disposto a efetuar sacrifícios. Se amo uma pessoa,
ela tem de merecer meu amor de alguma maneira. (Não estou levando em
consideração o uso que dela posso fazer, nem sua possível significação para mim
como objeto sexual, de uma vez que nenhum desses dois tipos de relacionamento
entra em questão onde o preceito de amar meu próximo se acha em jogo.) Ela
merecerá meu amor, se for de tal modo semelhante a mim, em aspectos
importantes, que eu me possa amar nela; merecê-lo-á também, se for de tal modo
mais perfeita do que eu, que nela eu possa amar meu ideal de meu próprio eu
(self). Terei ainda de amá-la, se for o filho de meu amigo, já que o sofrimento
que este sentiria se algum dano lhe ocorresse seria meu sofrimento também — eu
teria de partilhá-lo.
Mas, se essa pessoa for um estranho para
mim e não conseguir atrair-me por um de seus próprios valores, ou por qualquer
significação que já possa ter adquirido para a minha vida emocional, me será
muito difícil amá-la. Na verdade, eu estaria errado agindo assim, pois meu amor
é valorizado por todos os meus como um sinal de minha preferência por eles, e
seria injusto para com eles, colocar um estranho no mesmo plano em que eles
estão. Se, no entanto, devo amá-lo (com esse amor universal) meramente porque
ele também é um habitante da Terra, assim como o são um inseto, uma minhoca ou
uma serpente, receio então que sóuma pequena quantidade de meu amor caberá à
sua parte — e não, em hipótese alguma, tanto quanto, pelo julgamento de minha
razão, tenho o direito de reter para mim. Qual é o sentido de um preceito enunciado
com tanta solenidade, se seu cumprimento não pode ser recomendado como
razoável?
Através de um exame mais detalhado,
descubro ainda outras dificuldades. Não meramente esse estranho é, em geral,
indigno de meu amor; honestamente, tenho de confessar que ele possui mais
direito a minha hostilidade e, até mesmo, meu ódio. Não parece apresentar o
mais leve traço de amor por mim e não demonstra a mínima consideração para
comigo. Se disso ele puder auferir uma vantagem qualquer, não hesitará em me
prejudicar; tampouco pergunta a si mesmo se a vantagem assim obtida contém
alguma proporção com a extensão do dano que causa em mim. Na verdade, não
precisa nem mesmo auferir alguma vantagem; se puder satisfazer qualquer tipo de
desejo com isso, não se importará em escarnecer de mim, em me insultar, me
caluniar e me mostrar a superioridade de seu poder, e, quanto mais seguro se
sentir e mais desamparado eu for, mais, com certeza, posso esperar que se
comporte dessa maneira para comigo.
Caso se conduza de modo diferente, caso
mostre consideração e tolerância como um estranho, estou pronto a tratá-lo da
mesma forma, em todo e qualquer caso e inteiramente fora de todo e qualquer
preceito. Na verdade, se aquele imponente mandamento dissesse ‘Ama a teu
próximo como este te ama’, eu não lhe faria objeções. E há um segundo
mandamento que me parece mais incompreensível ainda e que desperta em mim uma
oposição mais forte ainda. Trata-se do mandamento ‘Ama os teus inimigos’.
Refletindo sobre ele, no entanto, percebo que estou errado em considerá-lo como
uma imposição maior. No fundo, é a mesma coisa.
Acho que agora posso ouvir uma voz solene
me repreendendo: ‘É precisamente porque teu próximo não é digno de amor, mas,
pelo contrário, é teu inimigo, que deves amá-lo como a ti mesmo’. Compreendo
então que se trata de um caso semelhante ao do Credo quia absurdum.Ora, é muito
provável que meu próximo, quando lhe for prescrito que me ame como a si mesmo,
responda exatamente como o fiz e me rejeite pelas mesmas razões. Espero que não
tenha os mesmos fundamentos objetivos para fazê-lo, mas terá a mesma idéia que
tenho. Ainda assim, o comportamento dos seres humanos apresenta diferenças que
a ética, desprezando o fato de que tais diferenças são determinadas, classifica
como ‘boas’ ou ‘más’. Enquanto essas inegáveis diferenças não forem removidas,
a obediência às elevadas exigências éticas acarreta prejuízos aos objetivos da
civilização, por incentivar o ser mau. Não podemos deixar de lembrar um
incidente ocorrido na câmara dos deputados francesa, quando a pena capital
estava em debate. Um dos membros acabara de defender apaixonadamente a abolição
dela e seu discurso estava sendo recebido com tumultuosos aplausos, quando uma
voz vinda do plenário exclamou: ‘Que messieurs les assassins commencent!
O elemento de verdade por trás disso tudo,
elemento que as pessoas estão tão dispostas a repudiar, é que os homens não são
criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se
quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos
deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso,
o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto
sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade,
a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente
sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe
sofrimento, torturá-lo e matá-lo. — Homo
homini lupus. Quem, em face de toda sua experiência da vida e da história,
terá a coragem de discutir essa asserção? Via de regra, essa cruel
agressividade espera por alguma provocação, ou se coloca a serviço de algum
outro intuito, cujo objetivo também poderia ter sido alcançado por medidas mais
brandas. Em circunstâncias que lhe são favoráveis, quando as forças mentais
contrárias que normalmente a inibem se encontram fora de ação, ela também se
manifesta espontaneamente e revela o homem como uma besta selvagem, a quem a
consideração para com sua própria espécie é algo estranho. Quem quer que
relembre as atrocidades cometidas durante as migrações raciais ou as invasões
dos hunos, ou pelos povos conhecidos como mongóis sob a chefia de Gengis Khan e
Tamerlão, ou na captura de Jerusalém pelos piedosos cruzados, ou mesmo, na
verdade, os horrores da recente guerra mundial,quem quer que relembre tais
coisas terá de se curvar humildemente ante a verdade dessa opinião.
A existência da inclinação para a
agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor com justiça que ela está
presente nos outros, constitui o fator que perturba nossos relacionamentos com
o nosso próximo e força a civilização a um tão elevado dispêndio [de energia].
Em conseqüência dessa mútua hostilidade primária dos seres humanos, a sociedade
civilizada se vê permanentemente ameaçada de desintegração. O interesse pelo
trabalho em comum não a manteria unida; as paixões instintivas são mais fortes
que os interesses razoáveis. A civilização tem de utilizar esforços supremos a
fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e manter suas
manifestações sob controle por formações psíquicas reativas.
Daí, portanto, o emprego de métodos
destinados a incitar as pessoas a identificações e relacionamentos amorosos
inibidos em sua finalidade, daí a restrição à vida sexual e daí, também, o
mandamento ideal de amar ao próximo como a si mesmo, mandamento que é realmente
justificado pelo fato de nada mais ir tão fortemente contra a natureza original
do homem. A despeito de todos os esforços, esses empenhos da civilização até
hoje não conseguiram muito. Espera-se impedir os excessos mais grosseiros da
violência brutal por si mesma, supondo-se o direito de usar a violência contra
os criminosos; no entanto, a lei não é capaz de deitar a mão sobre as
manifestações mais cautelosas e refinadas da agressividade humana. Chega a hora
em que cada um de nós tem de abandonar, como sendo ilusões, as esperanças que,
na juventude, depositou em seus semelhantes, e aprende quanta dificuldade e
sofrimento foram acrescentados à sua vida pela má vontade deles. Ao mesmo
tempo, seria injusto censurar a civilização por tentar eliminar da atividade
humana a luta e a competição. Elas são indubitavelmente indispensáveis. Mas
oposição não é necessariamente inimizade; simplesmente, ela é mal empregada e
tornada uma ocasião para a inimizade.
Os comunistas acreditam ter descoberto o
caminho para nos livrar de nossos males. Segundo eles, o homem é inteiramente
bom e bem disposto para como seu próximo, mas a instituição da propriedade
privada corrompeu-lhe a natureza. A propriedade da riqueza privada confere
poder ao indivíduo e, com ele, a tentação de maltratar o próximo, ao passo que
o homem excluído da posse está fadado a se rebelar hostilmente contra seu
opressor.
Se a propriedade privada fosse abolida,
possuída em comum toda a riqueza e permitida a todos a partilha de sua fruição,
a má vontade e a hostilidade desapareceriam entre os homens. Como as
necessidades de todos seriam satisfeitas, ninguém teria razão alguma para
encarar outrem comoinimigo; todos, de boa vontade, empreenderiam o trabalho que
se fizesse necessário. Não estou interessado em nenhuma crítica econômica do
sistema comunista; não posso investigar se a abolição da propriedade privada é
conveniente ou vantajosa. Mas sou capaz de reconhecer que as premissas
psicológicas em que o sistema se baseia são uma ilusão insustentável. Abolindo
a propriedade privada, privamos o amor humano da agressão de um de seus
instrumentos, decerto forte, embora, decerto também, não o mais forte; de
maneira alguma, porém, alteramos as diferenças em poder e influência que são
mal empregadas pela agressividade, nem tampouco alteramos nada em sua natureza.
A agressividade não foi criada pela
propriedade. Reinou quase sem limites nos tempos primitivos, quando a
propriedade ainda era muito escassa, e já se apresenta no quarto das crianças,
quase antes que a propriedade tenha abandonado sua forma anal e primária;
constitui a base de toda relação de afeto e amor entre pessoas ( com a única
exceção, talvez, do relacionamento da mãe com seu filho homem). Se eliminamos
os direitos pessoais sobre a riqueza material, ainda permanecem, no campo dos
relacionamentos sexuais, prerrogativas fadadas a se tornarem a fonte da mais
intensa antipatia e da mais violenta hostilidade entre homens que, sob outros
aspectos, se encontram em pé de igualdade. Se também removermos esse fator,
permitindo a liberdade completa da vida sexual, e assim abolirmos a família,
célula germinal da civilização, não podemos, é verdade, prever com facilidade
quais os novos caminhos que o desenvolvimento da civilização vai tomar; uma
coisa, porém, podemos esperar; é que, nesse caso, essa característica
indestrutível da natureza humana seguirá a civilização.
Evidentemente, não é fácil aos homens
abandonar a satisfação dessa inclinação para a agressão. Sem ela, eles não se
sentem confortáveis. A vantagem que um grupo cultural, comparativamente
pequeno, oferece, concedendo a esse instinto um escoadouro sob a forma de
hostilidade contra intrusos, não é nada desprezível. É sempre possível unir um
considerávelnúmero de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para
receberem as manifestações de sua agressividade. Em outra ocasião, examinei o
fenômeno no qual são precisamente comunidades com territórios adjacentes, e
mutuamente relacionadas também sob outros aspectos, que se empenham em rixas
constantes, ridicularizando-se umas às outras, como os espanhóis e os
portugueses por exemplo, os alemães do Norte e os alemães do Sul, os ingleses e
os escoceses, e assim por diante. Dei a esse fenômeno o nome de ‘narcisismo das
pequenas diferenças’, denominação que não ajuda muito a explicá-lo. Agora
podemos ver que se trata de uma satisfação conveniente e relativamente inócua
da inclinação para a agressão, através da qual a coesão entre os membros da
comunidade é tornada mais fácil.
Com respeito a isso, o povo judeu,
espalhado por toda a parte, prestou os mais úteis serviços às civilizações dos
países que os acolheram; infelizmente, porém, todos os massacres de judeus na
Idade Média não bastaram para tornar o período mais pacífico e mais seguro para
seus semelhantes cristãos. Quando, outrora, o Apóstolo Paulo postulou o amor
universal entre os homens como o fundamento de sua comunidade cristã, uma
extrema intolerância por parte da cristandade para com os que permaneceram fora
dela tornou-se uma conseqüência inevitável. Para os romanos, que não fundaram
no amor sua vida comunal como Estado, a intolerância religiosa era algo
estranho, embora, entre eles, a religião fosse do interesse do Estado e este se
achasse impregnado dela. Tampouco constituiu uma possibilidade inexeqüível que
o sonho de um domínio mundial germânico exigisse o anti-semitismo como seu
complemento, sendo, portanto, compreensível que a tentativa de estabelecer uma
civilização nova e comunista na Rússia encontre o seu apoio psicológico na
perseguição aos burgueses. Não se pode senão imaginar, com preocupação, sobre o
que farão os soviéticos depois que tiverem eliminado seus burgueses.
Se a civilização impõe sacrifícios tão
grandes, não apenas à sexualidade do homem, mas também à sua agressividade,
podemos compreender melhor porque lhe é difícil ser feliz nessa civilização. Na
realidade, o homem primitivo se achava em situação melhor, sem conhecer
restrições de instinto. Em contrapartida, suas perspectivas de desfrutar dessa
felicidade, por qualquer período de tempo, eram muito tênues. O homem
civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma
parcela de segurança. Não devemos esquecer, contudo, que na família primeva
apenas o chefe desfrutava da liberdade instintiva; o resto vivia em opressão
servil.Naquele período primitivo da civilização, o contraste entre uma minoria
que gozava das vantagens da civilização e uma maioria privada dessas vantagens
era, portanto, levada a seus extremos. Quanto aos povos primitivos que ainda
hoje existem, pesquisas cuidadosas mostraram que sua vida instintiva não é, de
maneira alguma, passível de ser invejada por causa de sua liberdade. Está
sujeita a restrições de outra espécie, talvez mais severas do que aquelas que
dizem respeito ao homem moderno.
Quando, com toda justiça, consideramos
falho o presente estado de nossa civilização, por atender de forma tão
inadequada às nossas exigências de um plano de vida que nos torne felizes, e
por permitir a existência de tanto sofrimento, que provavelmente poderia ser
evitado; quando, com crítica impiedosa, tentamos pôr à mostra as raízes de sua
imperfeição, estamos indubitavelmente exercendo um direito justo, e não nos
mostrando inimigos da civilização. Podemos esperar efetuar, gradativamente, em
nossa civilização alterações tais, que satisfaçam melhor nossas necessidades e
escapem às nossas críticas. Mas talvez possamos também nos familiarizar com a
idéia de existirem dificuldades, ligadas à natureza da civilização, que não se
submeterão a qualquer tentativa de reforma. Além e acima das tarefas de
restringir os instintos, para as quais estamos preparados, reivindica nossa
atenção o perigo de um estado de coisas que poderia ser chamado de ‘pobreza
psicológica dos grupos’. Esse perigo é mais ameaçador onde os vínculos de uma
sociedade são principalmente constituídos pelas identificações dos seus membros
uns com os outros, enquanto que indivíduos do tipo de um líder não adquirem a
importância que lhes deveria caber na formação de um grupo. O presente estado
cultural dos Estados Unidos da América nos proporcionaria uma boa oportunidade
para estudar o prejuízo à civilização, que assim é de se temer. Evitarei,
porém, a tentação de ingressar numa crítica da civilização americana; não
desejo dar a impressão de que eu mesmo estou empregando métodos americanos.
VI
Em nenhum de meus trabalhos anteriores
tive, tão forte quanto agora, a impressão de que o que estou descrevendo
pertence ao conhecimento comum e de que estou desperdiçando papel e tinta, ao
mesmo tempo que usando o trabalho e o material do tipógrafo e do impressor para
expor coisas que, na realidade, são evidentes por si mesmas. Por essa razão,
ficaria feliz em desenvolver o tema se isso levasse à conclusão de que o
reconhecimento de um instinto agressivo, especial e independente, significa uma
alteração da teoria psicanalítica dos instintos.
Veremos, no entanto, que a coisa não é bem
assim, e que se trata simplesmente de focalizar de modo mais nítido uma mudança
de pensamento há muito tempo introduzida, seguindo-a até suas últimas
conseqüências. De todas as partes lentamente desenvolvidas da teoria analítica,
a teoria dos instintos foi a que mais penosa e cautelosamente progrediu.
Contudo, essa teoria era tão indispensável a toda a estrutura, que algo tinha
de ser colocado em seu lugar. No que constituía, a princípio, minha completa
perplexidade, tomei como ponto de partida uma expressão do poeta-filósofo
Schiller: ‘são a fome e o amor que movem o mundo’. A fome podia ser vista como
representando os instintos que visam a preservar o indivíduo, ao passo que o
amor se esforça na busca de objetos, e sua principal função, favorecida de
todos os modos pela natureza, é a preservação da espécie. Assim, de início, os
instintos do ego e os instintos objetais se confrontavam mutuamente. Foi para
denotar a energia destes últimos, e somente deles, que introduzi o termo
‘libido’. Assim, a antítese se verificou entre os instintos do ego e os
instintos ‘libidinais’ do amor (em seu sentido mais amplo) que eram dirigidos a
um objeto. Um desses instintos objetais, o instinto sádico, destacou-se do
restante, é verdade, pelo fato de o seu objetivo estar muito longe de ser o
amar. Ademais, ele se encontrava obviamente ligado, sob certos aspectos, aos
instintos do ego, pois não podia ocultar sua estreita afinidade com os
instintos de domínio que não possuem propósito libidinal.
Mas essas discrepâncias foram superadas;
afinal de contas, o sadismo fazia claramente parte da vidasexual, em cujas
atividades a afeição podia ser substituída pela crueldade. A neurose foi
encarada como o resultado de uma luta entre o interesse de autopreservação e as
exigências da libido, luta da qual o ego saiu vitorioso, ainda que ao preço de
graves sofrimentos e renúncias.
Todo analista admitirá que, ainda hoje,
essa opinião não soa como um erro há muito tempo abandonado. Não obstante,
alterações nela se tornaram essenciais, à medida que nossas investigações
progrediam das forças reprimidas para as repressoras, dos instintos objetais
para o ego. O decisivo passo à frente consistiu na introdução do conceito de
narcisismo, isto é, a descoberta de que o próprio ego se acha catexizado pela
libido, de que o ego, na verdade, constitui o reduto original dela e continua a
ser, até certo ponto, seu quartel-general. Essa libido narcísica se volta para
os objetos, tornando-se assim libido objetal, e podendo transformar-se
novamente em libido narcísica. O conceito do narcisismo possibilitou a obtenção
de uma compreensão analítica das neuroses traumáticas, de várias das afecções
fronteiriças às psicoses, bem como destas últimas. Não foi necessário abandonar
nossa interpretação das neuroses de transferência como se fossem tentativas
feitas pelo ego para se defender contra a sexualidade, mas o conceito de libido
ficou ameaçado. Como os instintos do ego também são libidinais, pareceu, por
certo tempo, inevitável que tivéssemos de fazer a libido coincidir com a
energia instintiva em geral, como C. G. Jung já advogara anteriormente. Não
obstante, ainda permanecia em mim uma espécie de convicção, para a qual ainda
não me considerava capaz de encontrar razões, de que os instintos não podiam
ser todos da mesma espécie. Meu passo seguinte foi dado em Mais Além do
Princípio do Prazer (1920g), quando, pela primeira vez, a compulsão para
repetir e o caráter conservador da vida instintiva atraíram minha atenção.
Partindo de especulações sobre o começo da
vida e de paralelos biológicos, concluí que, ao lado do instinto para preservar
a substância viva e para reuni-la em unidades cada vez maiores, deveria haver
outro instinto, contrário àquele, buscando dissolver essas unidades e
conduzi-las de volta a seu estado primevo e inorgânico. Isso equivalia a dizer
que, assim como Eros, existia também um instinto de morte. Os fenômemos da vida
podiam ser explicados pela ação concorrente, ou mutuamente oposta, desses dois
instintos. Não era fácil, contudo, demonstrar as atividades desse suposto
instintode morte. As manifestações de Eros eram visíveis e bastante ruidosas.
Poder-se-ia presumir que o instinto de morte operava silenciosamente dentro do
organismo, no sentido de sua destruição, mas isso, naturalmente, não constituía
uma prova. Uma idéia mais fecunda era a de que uma parte do instinto é desviada
no sentido do mundo externo e vem à luz como um instinto de agressividade e
destrutividade. Dessa maneira, o próprio instinto podia ser compelido para o
serviço de Eros, no caso de o organismo destruir alguma outra coisa, inanimada
ou animada, em vez de destruir o seu próprio eu (self). Inversamente, qualquer
restrição dessa agressividade dirigida para fora estaria fadada a aumentar a
autodestruição, a qual, em todo e qualquer caso, prossegue. Ao mesmo tempo,
pode-se suspeitar, a partir desse exemplo, que os dois tipos de instinto
raramente — talvez nunca — aparecem isolados um do outro, mas que estão
mutuamente mesclados em proporções variadas e muito diferentes, tornando-se
assim irreconhecíveis para nosso julgamento. No sadismo, há muito tempo de nós
conhecido como instinto componente da sexualidade, teríamos à nossa frente um
vínculo desse tipo particularmente forte, isto é, um vínculo entre as
tendências para o amor e o instinto destrutivo, ao passo que sua contrapartida,
o masoquismo, constituiria uma união entre a destrutividade dirigida para
dentro e a sexualidade, união que transforma aquilo que, de outro modo, é uma
tendência imperceptível, numa outra conspícua e tangível.
A afirmação da existência de um instinto
de morte ou de destruição deparou-se com resistências, inclusive em círculos
analíticos; estou ciente de que existe, antes, uma inclinação freqüente a
atribuir o que é perigoso e hostil no amor a uma bipolaridade original de sua
própria natureza. A princípio, foi apenas experimentalmente que apresentei as
opiniões aqui desenvolvidas, mas, com o decorrer do tempo, elas conseguiram tal
poder sobre mim, que não posso mais pensar de outra maneira. Para mim, elas são
muito mais úteis, de um ponto de vista teórico do que quaisquer outras
possíveis; fornecem aquela simplificação, sem ignorar ou violentar os fatos,
pela qual nos esforçamos no trabalho científico. Sei que no sadismo e no
masoquismo sempre vimos diante de nós manifestações do instinto destrutivo
(dirigidas para fora e para dentro), fortemente mescladas ao erotismo, mas não
posso mais entender como foi que pudemos ter desprezado a ubiqüidade da
agressividade e da destrutividade não eróticas e falhado em conceder-lhe o
devido lugar em nossa interpretação da vida. (O desejo de destruição, quando
dirigido para dentro, de fato foge, grandemente à nossa percepção, a menos que
estejarevestido de erotismo.) Recordo minha própria atitude defensiva quando a
idéia de um instinto de destruição surgiu pela primeira vez na literatura
psicanalítica, e quanto tempo levou até que eu me tornasse receptivo a ela.
Que outros tenham demonstrado, e ainda
demonstrem, a mesma atitude de rejeição, surpreende-me menos, pois ‘as
criancinhas não gostam’ quando se fala na inata inclinação humana para a
‘ruindade’, a agressividade e a destrutividade, e também para a crueldade. Deus
nos criou à imagem de Sua própria perfeição; ninguém deseja que lhe lembrem
como é difícil reconciliar a inegável existência do mal — a despeito dos
protestos da Christian Science — com o Seu poder e a Sua bondade. O Demônio
seria a melhor saída como desculpa para Deus; dessa maneira, ele estaria
desempenhando o mesmo papel, como agente de descarga econômica, que o judeu
desempenha no mundo do ideal ariano. Mas, ainda assim, pode-se responsabilizar
Deus pela existência do Demônio, bem como pela existência da malignidade que
este corporifica. Em vista dessas dificuldades, ser-nos-á mais aconselhável,
nas ocasiões apropriadas, fazer uma profunda reverência à natureza
profundamente moral da humanidade; isso nos ajudará a sermos populares e, por
causa disso, muita coisa nos será perdoada. O nome ‘libido’ pode mais uma
vez ser utilizado para denotar as manifestações do poder de Eros, a fim de
distingui-las da energia do instinto de morte. Deve-se confessar que temos uma
dificuldade muito maior em apreender esse instinto; podemos apenas suspeitá-lo,
por assim dizer, como algo situado em segundo plano, por trás de Eros, fugindo
à detecção, a menos que sua presença seja traída pelo fato de estar ligado a
Eros. É no sadismo — onde o instinto de morte deforma o objetivo erótico em seu
próprio sentido, embora, ao mesmo tempo, satisfaça integralmente o impulso
erótico — que conseguimos obter a mais clara compreensão interna (insight) de
sua natureza e de sua relação com Eros. Contudo, mesmo onde ele surge sem
qualquer intuito sexual, na mais cega fúria de destrutividade, não podemos
deixar de reconhecer que a satisfação do instinto se faz acompanhar por um grau
extraordinariamente alto de fruição narcísica, devido ao fato de presentear o
ego com a realização de antigos desejos de onipotência deste último. O instinto
de destruição, moderado e domado, e, por assim dizer, inibido em sua
finalidade, deve, quando dirigido para objetos, proporcionar ao ego a
satisfação de suas necessidades vitais e o controle sobre a natureza. Como a
afirmação da existência do instinto se baseia principalmente em fundamentos
teóricos, temos também de admitir que ela não se acha inteiramente imune a
objeções teóricas. Mas é assim que as coisas se nos apresentam atualmente, no
presente estado de nosso conhecimento; a pesquisa e a reflexão futuras
indubitavelmente trarão novas luzes decisivas para esse tema.
Em tudo o que se segue, adoto, portanto, o
ponto de vista de que a inclinação para a agressão constitui, no homem, uma
disposição instintiva original e auto-subsistente, e retorno à minha
opinião,ver [[1]] de que ela é o maior impedimento à civilização. Em
determinado ponto do decorrer dessa investigação ver [[1]], fui conduzido à
idéia de que a civilização constituía um processo especial que a humanidade
experimenta, e ainda me acho sob a influência dela. Posso agora acrescentar que
a civilização constitui um processo a serviço de Eros, cujo propósito é
combinar indivíduos humanos isolados, depois famílias e, depois ainda, raças,
povos e nações numa únicagrande unidade, a unidade da humanidade. Porque isso
tem de acontecer, não sabemos; o trabalho de Eros é precisamente este. Essas
reuniões de homens devem estar libidinalmente ligadas umas às outras. A
necessidade, as vantagens do trabalho em comum, por si sós, não as manterão
unidas. Mas o natural instinto agressivo do homem, a hostilidade de cada um
contra todos e a de todos contra cada um, se opõe a esse programa da
civilização. Esse instinto agressivo é o derivado e o principal representante
do instinto de morte, que descobrimos lado a lado de Eros e que com este divide
o domínio do mundo. Agora, penso eu, o significado da evolução da civilização
não mais nos é obscuro. Ele deve representar a luta entre Eros e a Morte, entre
o instinto de vida e o instinto de destruição, tal como ela se elabora na
espécie humana. Nessa luta consiste essencialmente toda a vida, e, portanto, a
evolução da civilização pode ser simplesmente descrita como a luta da espécie
humana pela vida. E é essa batalha de gigantes que nossas babás tentam
apaziguar com sua cantiga de ninar sobre o Céu.
VII
Por que nossos parentes, os animais, não
apresentam uma luta cultural desse tipo? Não sabemos. Provavelmente alguns
deles — as abelhas, as formigas, as térmitas — batalharam durante milhares de
anos antes de chegarem às instituições estatais, à distribuição de funções e às
restrições ao indivíduo pelas quais hoje os admiramos. Constitui um sinal de
nossa condição atual o fato de sabermos, por nossos próprios sentimentos, que
não nos sentiríamos felizes em quaisquer desses Estados animais ou em qualquer
dos papéis neles atribuídos ao indivíduo. No caso das outras espécies animais,
pode ser que um equilíbrio temporário tenha sido alcançado entre as influências
de seu meio ambiente e os instintos mutuamente conflitantes dentro delas,
havendo ocorrido assim uma cessação de desenvolvimento. Pode ser que no homem
primitivo um novo acréscimo de libido tenha provocado um surto renovado de
atividade por parte do instinto destrutivo. Temos aqui muitas questões para as
quais ainda não existe resposta.
Outra questão nos interessa mais de perto.
Quais os meios que a civilização utiliza para inibir a agressividade que se lhe
opõe, torná-la inócua ou, talvez, livrar-se dela? Já nos familiarizamos com
alguns desses métodos, mas ainda não com aquele que parece ser o mais
importante. Podemos estudá-lo na história do desenvolvimento do indivíduo. O
que acontece neste para tornar inofensivo seu desejo de agressão? Algo notável,
que jamais teríamos adivinhado e que, não obstante, é bastante óbvio. Sua
agressividade é introjetada, internalizada; ela é, na realidade, enviada de
volta para o lugar de onde proveio, isto é, dirigida no sentido de seu próprio
ego. Aí, é assumida por uma parte do ego, que se coloca contra o resto do ego,
como superego, e que então, sob a forma de ‘consciência’, está pronta para pôr
em ação contra o ego a mesma agressividade rude que o ego teria gostado de
satisfazer sobre outros indivíduos, a ele estranhos. A tensão entre o severo
superego e o ego, que a ele se acha sujeito, é por nós chamada de sentimento de
culpa; expressa-se como uma necessidade de punição. A civilização, portanto,
consegue dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o,
desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele, como
uma guarnição numa cidade conquistada.
Quanto à origem do sentimento de culpa, as
opiniões do analista diferem das dos outros psicólogos, embora também ele não
ache fácil descrevê-lo. Inicialmente, se perguntarmos como uma pessoa vem a ter
sentimento deculpa, chegaremos a uma resposta indiscutível: uma pessoa sente-se
culpada (os devotos diriam ‘pecadora’) quando fez algo que sabe ser ‘mau’.
Reparamos, porém, em quão pouco essa resposta nos diz. Talvez, após certa
hesitação, acrescentemos que, mesmo quando a pessoa não fez realmente uma coisa
má, mas apenas identificou em si uma intenção de fazê-la, ela pode encarar-se
como culpada. Surge então a questão de saber por que a intenção é considerada
equivalente ao ato. Ambos os casos, contudo, pressupõem que já se tenha
reconhecido que o que é mau é repreensível, é algo que não deve ser feito.
Como se chega a esse julgamento? Podemos
rejeitar a existência de uma capacidade original, por assim dizer, natural de
distinguir o bom do mau. O que é mau, freqüentemente, não é de modo algum o que
é prejudicial ou perigoso ao ego; pelo contrário, pode ser algo desejável pelo
ego e prazeroso para ele. Aqui, portanto, está em ação uma influência estranha,
que decide o que deve ser chamado de bom ou mau. De uma vez que os próprios
sentimentos de uma pessoa não a conduziriam ao longo desse caminho, ela deve
ter um motivo para submeter-se a essa influência estranha. Esse motivo é
facilmente descoberto no desamparo e na dependência dela em relação a outras
pessoas, e pode ser mais bem designado como medo da perda de amor. Se ela perde
o amor de outra pessoa de quem é dependente, deixa também de ser protegida de
uma série de perigos. Acima de tudo, fica exposta ao perigo de que essa pessoa
mais forte mostre a sua superioridade sob forma de punição. De início, portanto,
mau é tudo aquilo que, com a perda do amor, nos faz sentir ameaçados. Por medo
dessa perda, deve-se evitá-lo. Esta também é a razão por que faz tão pouca
diferença que já se tenha feito a coisa má ou apenas se pretenda fazê-la. Em
qualquer um dos casos, o perigo só se instaura, se e quando a autoridade
descobri-lo, e, em ambos, a autoridade se comporta da mesma maneira.
Esse estado mental é chamado de ‘má
consciência’; na realidade, porém, não merece esse nome, pois, nessa etapa, o
sentimento de culpa é, claramente, apenas um medo da perda de amor, uma
ansiedade ‘social’. Em crianças, ele nunca pode ser mais do que isso, e em
muitos adultos ele só se modifica até o ponto em que o lugar do pai ou dos dois
genitores é assumido pela comunidade humana mais ampla. Por conseguinte, tais
pessoas habitualmente se permitem fazer qualquer coisa má que lhes prometa
prazer, enquanto se sentem seguras de que a autoridade nada saberá a respeito,
ou não poderá culpá-las por isso; só têm medo de serem descobertas. A sociedade
atual, geralmente, vê-se obrigada a levar em conta esse estado mental. Uma
grande mudança só se realiza quando a autoridade é internalizada através do
estabelecimento de um superego. Os fenômenos da consciência atingem então um
estágio mais elevado. Na realidade, então devemos falar de consciência ou de
sentimento de culpa. Nesse ponto, também, o medo de ser descoberto se extingue;
além disso, a distinção entre fazer algo mau e desejar fazê-lo desaparece
inteiramente, já que nada pode ser escondido do superego, sequer os
pensamentos. É verdade que a seriedade da situação, de um ponto de vista real,
se dissipou, pois a nova autoridade, o superego, ao que saibamos, não tem
motivos para maltratar o ego, com o qual está intimamente ligado; contudo, a influência
genética, que conduz à sobrevivência do que passou e foi superado, faz-se
sentir no fato de, fundamentalmente, as coisas permanecerem como eram de
início. O superego atormenta o ego pecador com o mesmo sentimento de ansiedade
e fica à espera de oportunidades para fazê-lo ser punido pelo mundo externo.
Nesse segundo estágio de desenvolvimento,
a consciência apresenta uma peculiaridade que se achava ausente do primeiro e
que não é mais fácil de explicar, pois quanto mais virtuoso um homem é, mais severo
e desconfiado é o seu comportamento, de maneira que, em última análise, são
precisamente as pessoas que levaram mais longe a santidade as que se
censuram da pior pecaminosidade. Isso significa que a virtude perde direito a
uma certa parte da recompensa prometida; o ego dócil e continente não desfruta
da confiança de seu mentor, e é em vão que se esforça, segundo parece, por
adquiri-la. Far-se-á imediatamente a objeção de que essas dificuldades são
artificiais, e dir-se-à que uma consciência mais estrita e mais vigilante
constitui precisamente a marca distintiva de um homem moral. Além disso, quando
os santos se chamam a si próprios de pecadores, não estão errados —
considerando-se as tentações à satisfação instintiva a que se encontram
expostos em grau especialmente alto —, já que, como todossabem, as tentações
são simplesmente aumentadas pela frustração constante, ao passo que a sua
satisfação ocasional as faz diminuir, ao menos por algum tempo. O campo da
ética, tão cheio de problemas, nos apresenta outro fato: a má sorte — isto é, a
frustração externa — acentua grandemente o poder da consciência no superego.
Enquanto tudo corre bem com um homem, a sua consciência é lenitiva e permite
que o ego faça todo tipo de coisas; entretanto, quando o infortúnio lhe
sobrevém, ele busca sua alma, reconhece sua pecaminosidade, eleva as exigências
de sua consciência, impõe-se abstinência e se castiga com penitências.
Povos inteiros se comportaram dessa
maneira, e ainda se comportam. Isso, contudo, é facilmente explicado pelo
estágio infantil original da consciência, o qual, como vemos, não é abandonado
após a introjeção no superego, persistindo lado a lado e por trás dele. O
Destino é encarado como um substituto do agente parental. Se um homem é
desafortunado, isso significa que não é mais amado por esse poder supremo, e,
ameaçado por essa falta de amor, mais uma vez se curva ao representante paterno
em seu superego, representante que, em seus dias de boa sorte estava pronto a
desprezar. Esse fato se torna especialmente claro quando o Destino é encarado
segundo o sentido estritamente religioso de nada mais ser do que uma expressão
da Vontade Divina.
O povo de Israel acreditava ser o filho
favorito de Deus e, quando o grande Pai fez com que infortúnios cada vez maiores
desabassem sobre seu povo, jamais a crença em Seu relacionamento com eles se
abalou, nem o Seu poder ou justiça foi posto em dúvida. Pelo contrário, foi
então que surgiram os profetas, que apontaram a pecaminosidade desse povo, e,
de seu sentimento de culpa, criaram-se os mandamentos superestritos de sua
religião sacerdotal. É digno de nota o comportamento tão diferente do homem
primitivo. Se ele se defronta com um infortúnio, não atribui a culpa a si
mesmo, mas a seu fetiche, que evidentemente não cumpriu o dever, e dá-lhe uma
surra, em vez de se punir a si mesmo.
Conhecemos, assim, duas origens do
sentimento de culpa: uma que surge do medo de uma autoridade, e outra,
posterior, que surge do medo dosuperego. A primeira insiste numa renúncia às
satisfações instintivas; a segunda, ao mesmo tempo em que faz isso exige
punição, de uma vez que a continuação dos desejos proibidos não pode ser
escondida do superego. Aprendemos também o modo como a severidade do superego —
as exigências da consciência — deve ser entendida. Trata-se simplesmente de uma
continuação da severidade da autoridade externa, à qual sucedeu e que, em
parte, substituiu. Percebemos agora em que relação a renúncia ao instinto se
acha com o sentimento de culpa.
Originalmente, renúncia ao instinto
constituía o resultado do medo de uma autoridade externa: renunciava-se às
próprias satisfação para não se perder o amor da autoridade. Se se efetuava
essa renúncia, ficava-se, por assim dizer, quite com a autoridade e nenhum
sentimento de culpa permaneceria. Quanto ao medo do superego, porém, o caso é
diferente. Aqui, a renúncia instintiva não basta, pois o desejo persiste e não
pode ser escondido do superego. Assim, a despeito da renúncia efetuada, ocorre
um sentimento de culpa. Isso representa uma grande desvantagem econômica na
construção de um superego ou, como podemos dizer, na formação de uma
consciência. Aqui, a renúncia instintiva não possui mais um efeito
completamente liberador; a continência virtuosa não é mais recompensada com a
certeza do amor. Uma ameaça de infelicidade externa — perda de amor e castigo
por parte da autoridade externa — foi permutada por uma permanente infelicidade
interna, pela tensão do sentimento de culpa.
Essas inter-relações são tão complicadas
e, ao mesmo tempo, tão importantes, que, ao risco de me repetir, as abordarei
ainda de outro ângulo. A seqüência cronológica, então, seria a seguinte. Em
primeiro lugar, vem a renúncia ao instinto, devido ao medo de agressão por
parte da autoridade externa. (É a isso, naturalmente, que o medo da perda de
amor equivale, pois o amor constitui proteção contra essa agressão punitiva.)
Depois, vem a organização de uma autoridade interna e a renúncia ao instinto
devido ao medo dela, ou seja, devido ao medo da consciência. Nessa segunda
situação, as más intenções são igualadas às más ações e daí surgem sentimento
de culpa e necessidade de punição. A agressividade da consciência continua a
agressividade da autoridade. Até aqui, sem dúvida, as coisas são claras; mas
onde é que isso deixa lugar para a influência reforçadora do infortúnio (da
renúncia imposta de fora),ver [[1]] e para a extraordinária severidade da
consciência nas pessoas melhores e mais dóceis ver [[1]]?Já explicamos
essasparticularidades da consciência, mas provavelmente ainda temos a impressão
de que essas explicações não atingem o fundo da questão e deixam ainda
inexplicado um resíduo. Aqui, por fim, surge uma idéia que pertence
inteiramente à psicanálise, sendo estranha ao modo comum de pensar das pessoas.
Essa idéia é de um tipo que nos capacita a compreender por que o tema geral
estava fadado a nos parecer confuso e obscuro, pois nos diz que, de início, a
consciência (ou, de modo mais correto, a ansiedade que depois se torna
consciência) é, na verdade, a causa da renúncia instintiva, mas que,
posteriormente, o relacionamento se inverte. Toda renúncia ao instinto torna-se
agora uma fonte dinâmica de consciência, e cada nova renúncia aumenta a
severidade e a intolerância desta última. Se pudéssemos colocar isso mais em
harmonia com o que já sabemos sobre a história da origem da consciência,
ficaríamos tentados a defender a afirmativa paradoxal de que a consciência é o
resultado da renúncia instintiva, ou que a renúncia instintiva (imposta a nós
de fora) cria a consciência, a qual, então, exige mais renúncias instintivas.
A contradição entre essa afirmativa e o
que anteriormente dissemos sobre a gênese da consciência não é, na realidade,
tão grande, e vemos uma maneira de reduzi-la ainda mais. A fim de facilitar
nossa exposição, tomemos como exemplo o instinto agressivo e suponhamos que a
renúncia em estudo seja sempre uma renúncia à agressão. (Isso, naturalmente, só
deve ser tomado como uma suposição temporária.) O efeito da renúncia instintiva
sobre a consciência, então, é que cada agressão de cuja satisfação o indivíduo
desiste é assumida pelo superego e aumenta a agressividade deste (contra o
ego). Isso não se harmoniza bem com o ponto de vista segundo o qual a
agressividade original da consciência é uma continuação da severidade da
autoridade externa, não tendo, portanto, nada a ver com a renúncia. Mas a
discrepância se anulará se postularmos uma derivação diferente para essa
primeira instalação da agressividade do superego. É provável que, na criança,
se tenha desenvolvido uma quantidade considerável de agressividade contra a
autoridade, que a impede de ter suas primeiras — e, também, mais importantes —
satisfações, não importando o tipo de privação instintiva que dela possa ser
exigida.
Ela, porém, é obrigada a renunciar à
satisfação dessa agressividade vingativa e encontra saída para essa situação
economicamente difícil com o auxílio de mecanismos familiares. Através da
identificação, incorpora a si a autoridade inatacável. Esta transforma-se então
em seu superego, entrando na posse de toda a agressividade que a criança
gostaria de exercer contra ele. O ego da criança tem de contentar-se com o
papel infeliz da autoridade — o pai — que foi assim degradada. Aqui, como tão
freqüentemente acontece, a situação [real] é invertida: ‘Se eu fosse o pai e
você fosse a criança, eu otrataria muito mal’. O relacionamento entre o
superego e o ego constitui um retorno, deformado por um desejo, dos
relacionamentos reais existentes entre o ego, ainda individido, e um objeto
externo. Isso também é típico. A diferença essencial, porém, é que a severidade
original do superego não representa — ou não representa tanto — a severidade
que dele [do objeto] se experimentou ou que se lhe atribui. Representa, antes,
nossa própria agressividade para com ele. Se isso é correto, podemos
verdadeiramente afirmar que, de início, a consciência surge através da
repressão de um impulso agressivo, sendo subseqüentemente reforçada por novas
repressões do mesmo tipo.
Qual destes dois pontos de vista é correto?
O primeiro, que geneticamente parecia tão inexpugnável, ou o último, que de
maneira tão bem-vinda apara as arestas da teoria? Claramente, e também pelas
provas de observações diretas, ambos se justificam. Não contradizem mutuamente
e, até mesmo, coincidem em determinado ponto, pois a agressividade vingativa da
criança será em parte determinada pela quantidade de agressão punitiva que
espera do pai. A experiência mostra, contudo, que a severidade do superego que
uma criança desenvolve, de maneira nenhuma corresponde à severidade de
tratamento com que ela própria se defrontou. A severidade do primeiro parece
ser independente da do último. Uma criança criada de forma muito suave, pode
adquirir uma consciência muito estrita. No entanto, também seria errado
exagerar essa independência; não é difícil nos convencermos de que a severidade
da criação também exerce uma forte influência na formação do superego da
criança. Isso significa que, na formação do superego e no surgimento da
consciência, fatores constitucionais inatos e influências do ambiente real
atuam de forma combinada. O que, de modo algum, é surpreendente; ao contrário,
trata-se de uma condição etiológica universal para todos os processos desse
tipo. Pode-se também asseverar que, quando uma criançareage às suas primeiras
grandes frustrações instintivas com uma agressividade excessivamente forte e um
superego correspondentemente severo, ela está seguindo um modelo filogenético e
indo além da reação que seria correntemente justificada, pois o pai dos tempos
pré-históricos era indubitavelmente terrível e uma quantidade extrema de
agressividade lhe pode ser atribuída.
Assim, se passarmos do desenvolvimento
individual para o desenvolvimento filogenético, as diferenças entre as duas
teorias da gênese da consciência ficam menores ainda. Por outro lado, uma nova
e importante diferença aparece entre esses dois processos de desenvolvimento.
Não podemos afastar a suposição de que o sentimento de culpa do homem se
origina do complexo edipiano e foi adquirido quando da morte do pai pelos
irmãos reunidos em bando. Naquela ocasião, um ato de agressão não foi
suprimido, mas executado; foi, porém, o mesmo ato de agressão cuja repressão na
criança se imagina ser a fonte de seu sentimento de culpa. Nesse ponto, não me surpreenderei
se o leitor exclamar com raiva: ‘Então não faz diferença que se mate o pai ou
não — fica-se com um sentimento de culpa do mesmo jeito! Pedimos licença para
levantar algumas dúvidas. Ou não é verdade que o sentimento de culpa provém da
agressividade reprimida, ou então toda a história da morte do pai é uma ficção
e os filhos do homem primevo não mataram os pais mais do que as crianças o
fazem atualmente. Além disso, se não for ficção, mas fato histórico plausível,
seria o caso de acontecer algo que todos esperam que aconteça, ou melhor, uma
pessoa se sentir culpada porque realmente fez algo que não pode ser
justificado. E para esse evento, que afinal de contas, constitui uma ocorrência
cotidiana, a psicanálise ainda não forneceu qualquer explicação.’
Tudo isso é verdade, e temos de corrigir a
omissão. Tampouco existe qualquer grande segredo quanto ao assunto. Quando se
fica com um sentimento de culpa depois de ter praticado uma má ação, e por
causa dela, o sentimento deveria, mais propriamente, ser chamado de remorso.
Este se refere apenas a um ato que foi cometido, e, naturalmente, pressupõe que
uma consciência — a presteza em se sentir culpado — já existia antes que o ato
fosse praticado. Um remorso desse tipo, portanto, jamais pode ajudar-nos a
descobrir a origem da consciência e do sentimento de culpa em geral. O que
acontece nesses casos cotidianos é geralmente o seguinte: uma necessidade
instintiva adquire intensidade para alcançar satisfação, a despeito da
consciência, que, afinal de contas, é limitada em sua força, e, com o
debilitamentonatural da necessidade, devido a ter sido satisfeita, o equilíbrio
anterior de forças é restaurado. A psicanálise encontra assim uma justificativa
para excluir do presente exame o caso do sentimento de culpa devido ao remorso,
por mais freqüentemente que tais casos ocorram e por grande que seja sua
importância prática.
Mas, se o sentimento humano de culpa
remonta à morte do pai primevo, trata-se, afinal de contas, de um caso de
‘remorso’. Por ventura não devemos supor que [nessa época] uma consciência e um
sentimento de culpa, como pressupomos, já existiam antes daquele feito? Se não
existiam, de onde então proveio o remorso? Não há dúvida de que esse caso nos
explicaria o segredo do sentimento de culpa e poria fim às nossas dificuldades.
E acredito que o faz. Esse remorso constituiu o resultado da ambivalência
primordial de sentimentos para com o pai. Seus filhos o odiavam, mas também o
amavam. Depois que o ódio foi satisfeito pelo ato de agressão, o amor veio para
o primeiro plano, no remorso dos filhos pelo ato. Criou o superego pela
identificação com o pai; deu a esse agente o poder paterno, como uma punição
pelo ato de agressão que haviam cometido contra aquele, e criou as restrições
destinadas a impedir uma repetição do ato. E, visto que a inclinação à
agressividade contra o pai se repetiu nas gerações seguintes, o sentimento de
culpa também persistiu, cada vez mais fortalecido por cada parcela de
agressividade que era reprimida e transferida para o superego. Ora, penso eu,
finalmente podemos apreender duas coisas de modo perfeitamente claro: o papel
desempenhado pelo amor na origem da consciência e a fatal inevitabilidade do
sentimento de culpa. Matar o próprio pai ou abster-se de matá-lo não é,
realmente, a coisa decisiva. Em ambos os casos, todos estão fadados a sentir
culpa, porque o sentimento de culpa é expressão tanto do conflito devido à
ambivalência, quanto da eterna luta entre Eros e o instinto de destruição ou
morte. Esse conflito é posto em ação tão logo os homens se defrontem com a
tarefa de viverem juntos.
Enquanto a comunidade não assume outra
forma que não seja a da família, o conflito está fadado a se expressar no
complexo edipiano, a estabelecer a consciência e a criar o primeiro sentimento
de culpa. Quando se faz uma tentativa para ampliar a comunidade, o mesmo
conflito continua sob formas que dependem do passado; é fortalecido e resulta
numa intensificação adicional do sentimento de culpa. Visto que a civilização
obedece a um impulso erótico interno que leva os seres humanos a se unirem num
grupo estreitamente ligado, ela só pode alcançar seu objetivo através de um
crescente fortalecimento do sentimento de culpa. O que começou em relação ao
pai é completado em relação ao grupo. Se a civilização constitui o caminho
necessário de desenvolvimento, da família à humanidade como um todo, então, em
resultado do conflito inato surgido da ambivalência, da eterna luta entre as
tendências de amor e de morte, acha-se a ele inextricavelmente ligado um aumento
do sentimento de culpa, que talvez atinja alturas que o indivíduo considere
difíceis de tolerar. Aqui, somos lembrados da comovente denúncia dos ‘Poderes
Celestes’, feita pelo grande poeta:
lhr
führt in’s Leben uns hinein,lhr lasst den Armen schuldig werden,Dann überlasst
lhr den Pein,Denn iede Schuld rächt sich auf Erden.
E bem podemos suspirar aliviados ante o
pensamento de que, apesar de tudo, a alguns é concedido salvar, sem esforço, do
torvelinho de seus próprios sentimentos as mais profundas verdades, em cuja
direção o resto de nós tem de encontrar o caminho por meio de uma incerteza
atormentadora e com um intranqüilo tatear.
VIII
Chegando ao fim de sua jornada, o autor se
vê obrigado a pedir o perdão dos leitores por não ter sido um guia mais hábil e
por não lhes ter poupado as regiões mais ásperas da estrada e os
desconfortáveis détours. Não há dúvida de que isso poderia ter sido feito de
forma melhor. Tentarei, já findando o dia, proceder a algumas correções.
Em primeiro lugar, desconfio que o leitor
tem a impressão de que nosso exame do sentimento de culpa quebra a estrutura
deste ensaio; que ocupa espaço demais, de maneira que o resto do tema geral, ao
qual não se acha sempre estreitamente vinculado, é posto de lado. Isso pode ter
prejudicado a estrutura do trabalho, mas corresponde fielmente à minha intenção
de representar o sentimento de culpa como o mais importante problema no
desenvolvimento da civilização, e de demonstrar que o preço que pagamos por
nosso avanço em termos de civilização é uma perda de felicidade pela
intensificação do sentimento de culpa.Qualquer coisa que ainda soe estranha a
respeito dessa afirmação, que constitui a conclusão final de nossa
investigação, pode ser provavelmente localizada no relacionamento bastante
peculiar — até agora completamente inexplicado — que o sentimento de culpa
mantém com nossa consciência.
No caso comum de remorso, que encaramos
como normal, esse sentimento se torna claramente perceptível para a
consciência. Na verdade, estamos habituados a falar de uma ‘consciência de
culpa’, em vez de um ‘sentimento de culpa’. Nosso estudo das neuroses, ao qual,
afinal decontas, devemos as mais valiosas indicações para uma compreensão das
condições normais, nos leva de encontro a certas contradições. Numa dessas
afecções, a neurose obsessiva, o sentimento de culpa faz-se ruidosamente ouvido
na consciência; domina o quadro clínico e também a vida do paciente, mal
permitindo que apareça algo mais ao lado dele. Entretanto, na maioria dos
outros casos e formas de neurose, ele permanece completamente inconsciente, sem
que, por isso, produza efeitos menos importantes. Nossos pacientes não
acreditam em nós quando lhes atribuímos um ‘sentimento de culpa inconsciente’.
A fim de nos tornarmos inteligíveis para eles, falamos-lhes de uma necessidade
inconsciente de punição, na qual o sentimento de culpa encontra expressão.
Apesar disso, sua vinculação a uma forma específica de neurose não deve ser
superestimada. Mesmo na neurose obsessiva há tipos de pacientes que não se dão
conta de seu sentimento de culpa, ou que apenas o sentem como um mal-estar
atormentador, uma espécie de ansiedade, se impedidos de praticar certas ações.
Deveria ser possível chegar a compreender essas coisas, mas, até agora, não nos
foi possível. Aqui, talvez, nos possamos alegrar por termos assinalado que, no
fundo, o sentimento de culpa nada mais é do que uma variedade topográfica da
ansiedade; em suas fases posteriores, coincide completamente com o medo do
superego. E as relações da ansiedade com a consciência apresentam as mesmas e
extraordinárias variações. A ansiedade está sempre presente, num lugar ou
outro, por trás de todo sintoma; em determinada ocasião, porém, toma,
ruidosamente, posse da totalidade da consciência, ao passo que, em outra, se
oculta tão completamente, que somos obrigados a falar de ansiedade
inconsciente, ou, se desejamos ter uma consciência psicológica mais clara —
visto a ansiedade ser, no primeiro caso, simplesmente um sentimento —,
das possibilidades de ansiedade. Por conseguinte, é bastante concebível que
tampouco o sentimento de culpa produzido pela civilização seja percebido como
tal, e em grande parte permaneça inconsciente, ou apareça como uma espécie de
mal-estar, uma insatisfação, para a qual as pessoas buscam outras motivações.
As religiões, pelo menos, nunca desprezaram o papel desempenhado na civilização
pelo sentimento de culpa. Ademais — ponto que deixei de apreciar em outro
trabalho —, elas alegam redimir a humanidade desse sentimento de culpa, a que chamam
de pecado. Da maneira pela qual, no cristianismo, essa redenção é conseguida —
pela morte sacrificial de uma pessoa isolada, que, desse modo, toma sobre si
mesma a culpa comum a todos —, conseguimos inferir qual pode ter sido a
primeira ocasião em que essa culpa primária, que constitui também o primórdio
da civilização, foi adquirida.
Embora talvez não seja de grande
importância, não é supérfluo elucidar o significado de certas palavras, tais
como ‘superego’, ‘consciência’, ‘sentimento de culpa’, ‘necessidade de punição’
e ‘remorso’, as quais é possível que muitas vezes tenhamos utilizado de modo
frouxo e intercambiável. Todas se relacionam ao mesmo estado de coisas, mas
denotam diferentes aspectos seus. O superego é um agente que foi por nós inferido
e a consciência constitui uma função que, entre outras, atribuímos a esse
agente. A função consiste em manter a vigilância sobre as ações e as intenções
do ego e julgá-las, exercendo sua censura. O sentimento de culpa, a severidade
do superego, é, portanto, o mesmo que a severidade da consciência. É a
percepção que o ego tem de estar sendo vigiado dessa maneira, a avaliação da
tensão entre os seus próprios esforços e as exigências do superego. O medo
desse agente crítico (medo que está no fundo de todo relacionamento), a
necessidade de punição, constitui uma manifestação instintiva por parte do ego,
que se tornou masoquista sob a influência de um superego sádico; é, por assim
dizer, uma parcela do instinto voltado para a destruição interna presente no
ego, empregado para formar uma ligação erótica com o superego. Não devemos
falar de consciência até que um superego se ache demonstravelmente presente.
Quanto ao sentimento de culpa, temos de admitir que existe antes do superego e,
portanto, antes da consciência também. Nessa ocasião, ele é expressão imediata
do medo da autoridade externa, um reconhecimento da tensão existente entre o
ego e essa autoridade. É o derivado direto do conflito entre a necessidade do
amor da autoridade e o impulso no sentido da satisfação instintiva, cuja
inibição produz a inclinação para a agressão. A superposição desses dois
estratos do sentimento de culpa — um oriundo do medo da autoridade externa; o
outro, do medo da autoridade interna — dificultou nossa compreensão interna
(insight) da posição da consciência por certo número de maneiras. Remorso é um
termo geral para designar a reação do ego num caso de sentimento de culpa.
Contém, em forma pouco alterada, o material sensorial da ansiedade que opera
por trás do sentimento de culpa; ele próprio é uma punição, ou pode incluir a
necessidade de punição, podendo, portanto, ser também mais antigo do que a
consciência.
Tampouco fará mal que passemos mais uma
vez em revista as contradições que nos confundiram durante algum tempo, no
correr de nossa investigação. Assim, em determinado ponto, o sentimento de
culpa era a conseqüência dos atos de agressão de que alguém se abstivera; em
outro, porém — exatamente em seu começo histórico, a morte do pai —, constituía
a conseqüência de um ato de agressão que fora executado,ver [[1]]. Encontrou-se
uma saída para essa dificuldade, pois a instituição da autoridade interna, o
superego, alterou radicalmente a situação. Antes disso, o sentimento de culpa
coincidia com o remorso. (Podemos observar, incidentalmente, que o termo
‘remorso’ deveria ser reservado para a reação que surge depois de um ato de
agressão ter sido realmente executado.) Posteriormente, devido à onisciência do
superego, a diferença entre uma agressão pretendida e uma agressão executada perdeu
sua força. Daí por diante, o sentimento de culpa podia ser produzido não apenas
por um ato de violência realmente efetuado (como todos sabem), mas também por
um ato simplesmente pretendido (como a psicanálise descobriu).
Independentemente dessa alteração na situação psicológica, o conflito que surge
da ambivalência — o conflito entre os dois instintos primitivos — deixa atrás
de si o mesmo resultado,ver [[1]]. Somos tentados a procurar aqui a solução do
problema da relação variável em que o sentimento de culpa se acha para com a
consciência. Pode-se pensar que o sentimento de culpa surgido do remorso por
uma ação má deve ser sempre consciente, ao passo que o sentimento de culpa
originado da percepção de um impulso mau pode permanecer inconsciente. Contudo,
a resposta não é tão simples assim. A neurose obsessiva fala energicamente
contra ela.
A segunda contradição se referia à energia
agressiva da qual supomos dotado o superego. Segundo determinado ponto de
vista, essa energia simplesmente continua a energia punitiva da autoridade
externa e a mantém viva na mente,ver [[1]], ao passo que, de acordo com outra
opinião, ela consiste, pelo contrário, na própria energia agressiva que não foi
utilizada e que agora se dirige contra essa autoridade inibidora,ver [[1]]. A
primeira visão parecia ajustar-se melhor à história e a segunda à teoria do
sentimento de culpa. Uma reflexão mais adequada resolveu essa contradição
aparentemente irreconciliável de modo quase excessivamente completo; o que
restou como fator essencial e comum foi que, em cada caso, se lida com uma
agressividade deslocada para dentro. A observação clínica, ademais, nos permite
de fato distinguir duas fontes para a agressividade que atribuímos ao superego;
ou uma ou outra exerce o efeito mais forte em qualquer caso determinado, mas,
em geral, operam em harmonia.
É este, penso eu, o lugar para apresentar
a uma consideração séria uma opinião que anteriormente recomendei para
aceitação provisória. Na literatura analítica mais recente, mostra-se predileção
pela idéia de que qualquer tipo de frustração, qualquer satisfação instintiva
frustrada, resulta, ou pode resultar numa elevação do sentimento de culpa. Acho
que se conseguirá uma grande simplificação teórica, se se encarar isso como
sendo aplicável apenas aos instintos agressivos, e não se encontrará quase nada
que contradiga essa afirmação. Pois, como devemos explicar, em fundamentos
dinâmicos e econômicos, um aumento no sentimento de culpa que aparece no lugar
de uma exigência erótica não satisfeita? Isso só parece possível de maneira
indireta se supusermos que a prevenção de uma satisfação erótica exige uma
agressividade contra a pessoa que interferiu na satisfação, e que essa própria
agressividade, por sua vez, tem de ser recalcada. Se as coisas se passam assim,
é em suma, apenas a agressividade que é transformada em sentimento de culpa,
por ter sido recalcada e transmitida para o superego. Estou convencido de que
muitos processos admitirão exposição mais simples e mais clara, se as
descobertas da psicanálise sobre a derivação do sentimento de culpa forem
restringidas aos instintos agressivos. O exame do material clínico não nos
fornece aqui uma resposta inequívoca, porque, como nossa hipótese nos diz, os
dois tipos de instinto dificilmente aparecem em forma pura, isolados um do
outro, e uma investigação dos casos extremos provavelmente apontaria para a
direção por mim prevista.
Sinto-me tentado a extrair uma primeira
vantagem dessa visão mais restrita do caso, aplicando-a ao processo da
repressão. Conforme aprendemos, os sintomas neuróticos são, em sua essência,
satisfações substitutivas para desejos sexuais não realizados. No decorrer de
nosso trabalho analítico, descobrimos, para nossa surpresa, que talvez toda
neurose oculte uma quota de sentimento inconsciente de culpa, o qual, por sua
vez, fortifica os sintomas, fazendo uso deles como punição. Agora parece
plausível formular a seguinte proposição: quando uma tendência instintiva
experimenta a repressão, seus elementos libidinais são transformado-se em
sintomas e seus componentes agressivos em sentimento de culpa. Mesmo que essa
proposição não passe de uma aproximação mediana à verdade, é digna de nosso
interesse.
Alguns leitores deste trabalho podem ainda
ter a impressão de que já ouviram, de modo demasiado freqüente, a fórmula sobre
a luta entre Eros e o instinto de morte. Ela foi não só empregada para
caracterizar o processo de civilização que a humanidade sofre,ver [[1]],mas
também vinculada ao desenvolvimento do indivíduo ver [[1]] e, além disso, dela
se disse que revelou o segredo da vida orgânica em geral,ver [[1]]. Acho que
não podemos deixar de penetrar nas relações existentes entre esses três
processos. A repetição da mesma fórmula se justifica pela consideração de que
tanto o processo da civilização humana quanto o do desenvolvimento do indivíduo
são também processos vitais — o que equivale a dizer que devem partilhar a
mesma característica mais geral da vida. Por outro lado, as provas da presença
dessa característica geral, pela razão mesma de sua natureza geral, fracassam
em nos ajudar a estabelecer qualquer diferenciação [entre os processos],
enquanto não for reduzida por limitações especiais. Só podemos ficar
satisfeitos, portanto, afirmando que o processo civilizatório constitui uma
modificação, que o processo vital experimenta sob a influência de uma tarefa
que lhe é atribuída por Eros e incentivada por Ananké — pelas exigências da
realidade —, e que essa tarefa é a de unir indivíduos isolados numa comunidade
ligada por vínculos libidinais.
Quando, porém, examinamos a relação
existente entre o processo desenvolvimental ou educativo dos seres humanos
individuais, devemos concluir, sem muita hesitação, que os dois apresentam uma
natureza muito semelhante, caso não sejam o mesmo processo aplicado a tipos
diferentes de objeto. O processo da civilização da espécie humana é,
naturalmente, uma abstração de ordem mais elevada do que a do desenvolvimento
do indivíduo, sendo, portanto, de mais difícil apreensão em termos concretos;
tampouco devemos perseguir as analogias a um extremo obsessivo. Contudo, diante
da semelhança entre os objetivos dos dois processos — num dos casos, a
integração de um indivíduo isolado num grupo humano; no outro, a criação de um
grupo unificado a partir de muitos indivíduos —, não podemos surpreender-nos
com a similaridade entre os meios empregados e os fenômenos resultantes.
Em vista de sua excepcional importância,
não devemos adiar mais a menção de determinado aspecto que estabelece a
distinção entre os dois processos. No processo de desenvolvimento do indivíduo,
o programa do princípio do prazer, que consiste em encontrar a satisfação da
felicidade, é mantido como objetivo principal. A integração numa comunidade
humana,ou a adaptação a ela, aparece como uma condição dificilmente evitável,
que tem de ser preenchida antes que esse objetivo de felicidade possa ser
alcançado. Talvez fosse preferível que isso pudesse ser feito sem essa
condição.
Em outras palavras, o desenvolvimento do
indivíduo nos parece ser um produto da interação entre duas premências, a
premência no sentido da felicidade, que geralmente chamamos de ‘egoísta’, e a
premência no sentido da união com os outros da comunidade, que chamamos de
‘altruísta’. Nenhuma dessas descrições desce muito abaixo da superfície. No
processo de desenvolvimento individual, como dissemos, a ênfase principal recai
sobretudo na premência egoísta (ou a premência no sentido da felicidade), ao
passo que a outra premência, que pode ser descrita como ‘cultural’, geralmente se
contenta com a função de impor restrições. No processo civilizatório, porém, as
coisas se passam de modo diferente. Aqui, de longe, o que mais importa é o
objetivo de criar uma unidade a partir dos seres humanos individuais. É verdade
que o objetivo da felicidade ainda se encontra aí, mas relegado ao segundo
plano. Quase parece que a criação de uma grande comunidade humana seria mais
bem-sucedida se não se tivesse de prestar atenção à felicidade do indivíduo.
Assim, pode-se esperar que o processo desenvolvimental do indivíduo apresente
aspectos especiais, próprios dele, que não são reproduzidos no processo da
civilização humana. É apenas na medida em que está em união com a comunidade
como objetivo seu, que o primeiro desses processos precisa coincidir com o
segundo.
Assim como um planeta gira em torno de um
corpo central enquanto roda em torno de seu próprio eixo, assim também o
indivíduo humano participa do curso do desenvolvimento da humanidade, ao mesmo
tempo que persegue o seu próprio caminho na vida. Para nossos olhos enevoados,
porém, o jogo de forças nos céus parece fixado numa ordem que jamais muda; no
campo da vida orgânica, ainda podemos perceber como as forças lutam umas com as
outras e como os efeitos desse conflito estão em permanente mudança. Assim
também as duas premências, a que se volta para a felicidade pessoal e a que se
dirige para a união com os outros seres humanos, devem lutar entre si em todo
indivíduo, e assim também os dois processos de desenvolvimento, o individual e
o cultural, têm de colocar-se numa oposição hostil um para com o outro e
disputar-se mutuamente a posse do terreno. Contudo, essa luta entre o indivíduo
e a sociedade não constitui um derivado da contradição — provavelmente
irreconciliável — entre os instintos primevos de Eros e da morte. Trata-se de
uma luta dentro da economia da libido, comparável àquela referente à
distribuição da libido entre o ego e os objetos, admitindo uma acomodação final
no indivíduo, tal como, pode-se esperar, também o fará no futuro da civilização,
por mais que atualmente essa civilização possa oprimir a vida do indivíduo.
A analogia entre o processo civilizatório
e o caminho do desenvolvimento individual é passível de ser ampliada sob um
aspecto importante. Pode-se afirmar que também a comunidade desenvolve um
superego sob cuja influência se produz a evolução cultural. Constituiria tarefa
tentadora para todo aquele que tenha um conhecimento das civilizações humanas,
acompanhar pormenorizadamente essa analogia. Limitar-me-ei a apresentar alguns
pontos mais notáveis. O superego de uma época de civilização tem origem
semelhante à do superego de um indivíduo. Ele se baseia na impressão deixada
atrás de si pelas personalidades dos grandes líderes — homens de esmagadora
força de espírito ou homens em quem um dos impulsos humanos encontrou sua
expressão mais forte e mais pura e, portanto, quase sempre, mais unilateral. Em
muitos casos, a analogia vai mais além, como no fato de, durante a sua vida,
essas figuras — com bastante freqüência, ainda que não sempre — terem sido
escarnecidas e maltratadas por outros e, até mesmo, liquidadas de maneira
cruel. Do mesmo modo, na verdade, o pai primevo não atingiu a divindade senão
muito tempo depois de ter encontrado a morte pela violência. O exemplo mais
evidente dessa conjunção fatídica pode ser visto na figura de Jesus Cristo —
se, em verdade, essa figura não faz parte da mitologia, que a conclamou à
existência a partir de uma obscura lembrança daquele evento primevo.
Outro ponto de concordância entre o superego
cultural e o individual é que o primeiro, tal como o último, estabelece
exigências ideais estritas, cuja desobediência é punida pelo ‘medo da
consciência’,ver [[1]]. Aqui, em verdade, nos deparamos com a notável
circunstância de que, na realidade, os processos mentais relacionados são mais
familiares para nós e mais acessíveis à consciência tal como vistos no grupo,
do que o podem ser no indivíduo. Neste, quando a tensão cresce, é apenas a
agressividade do superego que, sob a forma de censuras, se faz ruidosamente
ouvida; com freqüência, suas exigências reais permanecem inconscientes no
segundo plano. Se as trazemos ao conhecimento consciente, descobrimos que elas
coincidem com os preceitos do superego cultural predominante. Neste ponto os
dois processos, o do desenvolvimento cultural do grupo e o do desenvolvimento
cultural do indivíduo, se acham, por assim dizer, sempre interligados. Daí
algumas das manifestações e propriedades do superego poderem ser mais
facilmente detectadas em seu comportamento na comunidade cultural do que no
indivíduo isolado.
O superego cultural desenvolveu seus
ideais e estabeleceu suas exigências. Entre estas, aquelas que tratam das
relações dos seres humanos uns com os outros estão abrangidas sob o título de
ética. As pessoas, em todos os tempos, deram o maior valor à ética, como se
esperassem que ela, de modo específico, produzisse resultados especialmente
importantes. De fato, ela trata de um assunto que pode ser facilmente
identificado como sendo o ponto mais doloroso de toda civilização. A ética
deve, portanto, ser considerada como uma tentativa terapêutica — como um
esforço por alcançar, através de uma ordem do superego, algo até agora não
conseguido por meio de quaisquer outras atividades culturais. Como já sabemos,
o problema que temos pela frente é saber como livrar-se do maior estorvo à
civilização — isto é, a inclinação, constitutiva dos seres humanos, para a
agressividade mútua; por isso mesmo, estamos particularmente interessados
naquela que é provavelmente a mais recente das ordens culturais do superego, o
mandamento de amar ao próximo como a si mesmo.Ver [[1].]
Em nossa pesquisa de uma neurose e em sua
terapia, somos levados a fazer duas censuras contra o superego do indivíduo. Na
severidade de suas ordens e proibições, ele se preocupa muito pouco com a
felicidade do ego, já que considera de modo insuficiente as resistências contra
a obrigação de obedecê-las — a força instintiva do id [em primeiro lugar] e as
dificuldades apresentadas pelo meio ambiente externo real [em segundo]. Por
conseguinte, somos freqüentemente obrigados, por propósitos terapêuticos, a nos
opormos ao superego e a nos esforçarmos por diminuir suas exigências.
Exatamente as mesmas objeções podem ser feitas contra as exigências éticas do
superego cultural. Ele também não se preocupa de modo suficiente com os fatos
da constituição mental dos seres humanos. Emite uma ordem e não pergunta se é
possível às pessoas obedecê-la. Pelo contrário, presume que o ego de um homem é
psicologicamente capaz de tudo que lhe é exigido, que o ego desse homem dispõe
de um domínio ilimitado sobre seu id. Trata-se de um equívoco e, mesmo naquelas
que são conhecidas como pessoas normais, o id não pode ser controlado além de
certos limites. Caso se exija mais de um homem, produzir-se-á nele uma revolta
ou uma neurose, ou ele se tornará infeliz.
O mandamento ‘Ama a teu próximo como a ti
mesmo’ constitui a defesa mais forte contra a agressividade humana e um
excelente exemplo dos procedimentos não psicológicos do superego cultural. É
impossível cumprir esse mandamento; uma inflação tão enorme de amor só pode
rebaixar seu valor, sem se livrar da dificuldade. A civilização não presta
atenção a tudo isso; ela meramente nos adverte que quanto mais difícil é
obedecer ao preceito, mais meritório é proceder assim. Contudo, todo aquele
que, nacivilização atual, siga tal preceito, só se coloca em desvantagem frente
à pessoa que despreza esse mesmo preceito. Que poderoso obstáculo à civilização
a agressividade deve ser, se a defesa contra ela pode causar tanta infelicidade
quanto a própria agressividade! A ética ‘natural’, tal como é chamada, nada tem
a oferecer aqui, exceto a satisfação narcísica de se poder pensar que se é
melhor do que os outros. Nesse ponto, a ética baseada na religião introduz suas
promessas de uma vida melhor depois da morte. Enquanto, porém, a virtude não
for recompensada aqui na Terra, a ética, imagino eu, pregará em vão. Acho
também bastante certo que, nesse sentido, uma mudança real nas relações dos
seres humanos com a propriedade seria de muito mais ajuda do que quaisquer
ordens éticas; mas o reconhecimento desse fato entre os socialistas foi
obscurecido, e tornado inútil para fins práticos, por uma nova e idealista
concepção equivocada da natureza humana.Ver [[1].]
Creio que a linha de pensamento que
procura descobrir nos fenômenos de desenvolvimento cultural o papel
desempenhado por um superego promete ainda outras descobertas. Apresso-me a
chegar ao fim, mas há uma questão a que dificilmente posso fugir. Se o
desenvolvimento da civilização possui uma semelhança de tão grande alcance com
o desenvolvimento do indivíduo, e se emprega os mesmos métodos, não temos nós
justificativa em diagnosticar que, sob a influência de premências culturais,
algumas civilizações, ou algumas épocas da civilização — possivelmente a
totalidade da humanidade — se tornaram ‘neuróticas’? Uma dissecação
analítica de tais neuroses poderia levar a recomendações terapêuticas passíveis
de reivindicarem um grande interesse prático.
Eu não diria que uma tentativa desse tipo,
de transportar a psicanálise para a comunidade cultural, seja absurda ou que
esteja fadada a ser infrutífera. Mas teríamos de ser muito cautelosos e não
esquecer que, em suma, estamos lidando apenas com analogias e que é perigoso,
não somente para os homens mas também para os conceitos, arrancá-los da esfera
em que se originaram e se desenvolveram. Além disso, a diagnose das neuroses
comunais se defronta com uma dificuldade especial. Numa neurose individual,
tomamos como nosso ponto de partida o contraste que distingue o paciente do seu
meio ambiente, o qual se presume ser ‘normal’. Para um grupo de que todos os
membros estejam afetados pelo mesmo distúrbio, não poderia existir esse pano de
fundo; ele teria de ser buscado em outro lugar. E, quanto à aplicação
terapêutica de nosso conhecimento, qual seria a utilidade da mais correta
análise das neuroses sociais, se não se possui autoridade para impor essa
terapia ao grupo? No entanto, e a despeito de todas essas dificuldades, podemos
esperar que, um dia, alguém se aventure a se empenhar na elaboração de uma
patologia das comunidades culturais.
Por uma ampla gama de razões, está muito
longe de minha intenção exprimir uma opinião sobre o valor da civilização
humana. Esforcei-me por resguardar-me contra o preconceito entusiástico que
sustenta ser a nossa civilização a coisa mais preciosa que possuímos ou
poderíamos adquirir, e que seu caminho necessariamente conduzirá a ápices de
perfeição inimaginada. Posso, pelo menos, ouvir sem indignação o crítico cuja
opinião diz que, quando alguém faz o levantamento dos objetivos do esforço
cultural e dos meios que este emprega, está fadado a concluir que não vale a
pena todo esse esforço e que seu resultado só pode ser um estado de coisas que
o indivíduo será incapaz de tolerar. Minha imparcialidade se torna mais fácil
para mim na medida em que conheço muito pouco a respeito dessas coisas. Sei que
apenas uma delas é certa: é que os juízos de valor do homem acompanham
diretamente os seus desejos de felicidade, e que, por conseguinte, constituem
uma tentativa de apoiar com argumentos as suas ilusões. Acharia muito
compreensível que alguém assinalasse a natureza obrigatória do curso da
civilização humana e que dissesse, por exemplo, que as tendências para uma
restrição da vida sexual ou para a instituição de um ideal humanitário à custa
da seleção natural foram tendências de desenvolvimento impossíveis de serem
desviadas ou postas de lado, e às quais é melhor para nós nos submetermos, como
se constituíssem necessidades da natureza. Também estou a par da objeção que
pode ser levantada contra isso, objeção segundo a qual, na história da
humanidade, tendências como estas, consideradas insuperáveis, freqüentemente
foram relegadas e substituídas por outras. Assim, não tenho coragem de me
erguer diante de meus semelhantes como um profeta; curvo-me à sua censura de
que não lhes posso oferecer consolo algum, pois, no fundo, é isso que todos
estão exigindo, e os mais arrebatados revolucionários não menos apaixonadamente
do que os mais virtuosos crentes.
A questão fatídica para a espécie humana
parece-me ser saber se, e até que ponto, seu desenvolvimento cultural
conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo instinto
humano de agressão e autodestruição. Talvez, precisamente com relação a isso, a
época atual mereça um interesse especial. Os homens adquiriram sobre as forças
da natureza um tal controle, que, com sua ajuda, não teriam dificuldades em se
exterminarem uns aos outros, até o último homem. Sabem disso, e é daí que
provém grande parte de sua atual inquietação, de sua infelicidade e de sua
ansiedade. Agora só nos resta esperar que o outro dos dois ‘Poderes Celestes’
ver [[1]], o eterno Eros, desdobre suas forças para se afirmar na luta com seu
não menos imortal adversário. Mas quem pode prever com que sucesso e com que
resultado?
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OBSERVAÇÕES SOBRE ESTA OBRA DE FREUD
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1930 Viena: Internationaler
Psychoanalytischer Verlag, 136 págs.
1931 2ª ed. (Reimpressão da 1ª ed., com
alguns acréscimos.)
1934 G.S., 12, 29-114.
1948 G.W., 14, 421-506.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
Civilization
and its Discontents
1930
Londres: Hogarth Press e Institute of Psycho-Analysis. Nova Iorque: Cape and Smith, 144 págs. (Trad. de Joan Riviere.)
A atual tradução baseia-se na publicada em
1930.
O primeiro capítulo do original alemão foi
publicado pouco antes do resto do livro, em Psychoanal. Bewegung,1 (4)
novembro-dezembro de 1929. O quinto capítulo apareceu separadamente no número
seguinte do mesmo periódico, 2 (1), janeiro-fevereiro de 1930. Duas ou três
notas de rodapé a mais foram incluídas na edição de 1931 e uma frase final foi
acrescentada à obra. Nenhum desses acréscimos apareceram na primeira versão da
tradução inglesa.
Freud terminara O Futuro de uma Ilusão no
outono de 1927. Durante os dois anos seguintes, principalmente, sem dúvida, por
causa de sua doença, produziu muito pouco. No verão de 1929, porém, começou a
escrever outro livro, mais uma vez sobre um assunto sociológico. O primeiro
esboço foi terminado por volta de fins de julho; o livro foi enviado à gráfica
no começo de novembro e realmente publicado antes do fim do ano, embora
trouxesse a data de ‘1930’ em sua página de rosto (Jones, 1957, 157-8).
O título original para ele escolhido por
Freud foi ‘Das Unglück in der Kultur’ (‘A Infelicidade na Civilização’), mas
‘Unglück’ foi posteriormente alterado para ‘Unbehagen’, palavra para a qual foi
difícil escolher um equivalente inglês, embora o francês ‘malaise‘ pudesse ter
servido. Numa carta à sua tradutora, a Sra. Riviere, Freud sugeriu‘O
Desconforto do Homem na Civilização’, mas foi ela própria que descobriu a
solução ideal para a dificuldade no título finalmente adotado.
O tema principal do livro — o antagonismo
irremediável entre as exigências do instinto e as restrições da civilização —
pode ter sua origem remontada a alguns dos mais antigos trabalhos psicológicos
de Freud. Assim, em 31 de maio de 1897, escreveu a Fliess que ‘o incesto é
anti-social e a civilização consiste numa progressiva renúncia a ele’ (Freud,
1950a, Rascunho N), e, um ano depois, no artigo ‘Sexuality in the Aetiology of
the Neuroses’ (1898a), escreveu que ‘podemos com justiça responsabilizar nossa
civilização pela disseminação da neurastenia’. Não obstante, em seus primeiros
trabalhos, Freud não parece ter considerado a repressão como sendo inteiramente
devida a influências sociais externas. Embora em seus Três Ensaios (1905d),
fale da ‘relação inversa que existe entre a civilização e o livre
desenvolvimento da sexualidade’ (Edição Standard Brasileira, Vol. VII, pág.
250, IMAGO Editora, 1972), em outra passagem da mesma obra, fez o seguinte
comentário sobre as barreiras opostas ao instinto sexual surgidas durante o
período de latência: ‘Tem-se das crianças civilizadas uma impressão de que a
construção dessas barreiras é um produto da educação, e sem dúvida, a educação
muito tem a ver com ela. Mas, na realidade, este desenvolvimento é
organicamente determinado e fixado pela hereditariedade, e pode ocasionalmente
ocorrer sem qualquer auxílio da educação.’ (Ibid., pág. 157.)
A noção de haver uma ‘repressão orgânica’
que prepara o caminho para a civilização — noção expandida nas duas longas
notas de rodapé ao início e ao final do Capítulo IV (pág. 77 e seg. e 57 e
segs., adiante) — remonta ao mesmo período anterior. Numa carta a Fliess, em 14
de novembro de 1897, Freud escreveu que freqüentemente suspeitou ‘que algo
orgânico desempenhou um papel na repressão’ (Freud, 1950a, Carta 75).
Prossegue, no mesmo sentido daquelas notas de rodapé, sugerindo a importância,
como fatores de repressão, da adoção de uma postura ereta e da substituição do
olfato pela vista como sentido dominante. Uma alusão ainda mais precoce à mesma
idéia ocorre numa carta de 11 de janeiro de 1897 (ibid., Carta 55). Nos
trabalhos publicados de Freud, as únicas menções dessas idéias, antes do atual,
parecem ser uma breve passagem na análise do ‘Rat Man’ (1909d), Satndard Ed.,
10, 247-8, e outra ainda mais sucinta no segundo artigo sobre a psicologia do
amor (1912d), Edição Standard Brasileira, Vol. XI, pág.172, IMAGO Editora,
1972. De modo particular, nenhuma análise das origens internas mais profundas
da civilização pode ser encontrada naquilo que é, de longe, o mais longo dos
primeiros estudos de Freud sobre o assunto, ou seja, o artigo ‘“Civilized”
Sexual Morality and Modern Nervous Illness’ (1908d), que dá a impressão de as
restrições da civilização serem algo imposto desde fora.
Na verdade, contudo, não foi possível
nenhuma avaliação clara do papel desempenhado nessas restrições pelas
influências internas e externas e seus efeitos recíprocos, até que as
investigações realizadas por Freud sobre a psicologia do ego o conduziram às
hipóteses sobre o superego e sua origem nas mais antigas relações objetais do
indivíduo. É devido a isso que uma parte tão grande da presente obra
(especialmente nos Capítulos VII e VIII) se interessa pela exploração e
clarificação ulteriores da natureza do sentimento de culpa, e que Freud,ver
([1]), declara sua ‘intenção de representar o sentimento de culpa como o mais
importante problema no desenvolvimento da civilização’. E isso, por sua vez,
constitui o fundamento para o segundo tema lateral de importância da obra
(embora nenhum deles seja, na verdade, um tema lateral), a saber, o instinto de
destruição.
A história das opiniões de Freud sobre o
instinto da agressão ou de destruição é complicada e só resumidamente pode ser
indicada aqui. Através de todos os seus primeiros escritos, o contexto em que
ele predominantemente o encarou foi o do sadismo. Seus primeiros estudos mais
longos sobre ele ocorreram nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade
(1905d), onde surgiu como um dos ‘instintos componentes’ ou ‘parciais’ do
instinto sexual. ‘Assim’, escreveu ele na Seção 2 (B) do primeiro ensaio, ‘o
sadismo corresponderia a um componente agressivo do instinto sexual que se
tornou independente e exagerado e, por deslocamento, usurpou a posição
dominante’ (Edição Standard Brasileira, Vol. VII, IMAGO Editora, 1972, págs.
159-60). Não obstante, posteriormente, na Seção 4 do segundo ensaio, a
independência original dos impulsos agressivos foi reconhecida: ‘Pode-se
presumir que os impulsos de crueldade surgem de fontes que são, na realidade,
independentes da sexualidade, mas podem unir-se a ela num estágio prematuro’
(ibid., 198n). As fontes independentes indicadas deveriam ter sua origem
remontada aos instintos autopreservativos. Essa passagem foi alterada na edição
de 1915, onde se declarou que ‘o impulso da crueldade surge do instinto de
domínio’ e a frase sobre ser ele ‘independente da sexualidade ‘foi omitida. Mas
já em 1909, no decorrer do combate às teorias de Adler, Freud fizera um pronunciamento
muito mais amplo. Na Seção II do terceiro capítulo da história clínica do
‘Pequeno Hans’ (1909b), Freud escreveu: ‘Não consigo convencer-me da existência
de um instinto agressivo especial, ao lado dos instintos familiares de
autopreservação e sexo, e em pé de igualdade com eles’ (ibid., 10, 140).
A relutância em aceitar um instinto
agressivo independente da libido foi auxiliada pela hipótese do narcisismo. Os
impulsos de agressividade, e de ódio também, desde o início pareceram pertencer
ao instinto autopreservativo, e, visto que este se achava agora incluído na
libido, não se exigia qualquer instinto agressivo independente. E assim era a
despeito da bipolaridade das relações objetais, das freqüentes misturas de amor
e ódio, e da complexa origem do próprio ódio. (Ver ‘Instincts and their
Vicissitudes’ (1915c), Standard Ed., 14, 138-9).
Foi somente após a hipótese formulada por
Freud de um ‘instinto de morte’ que um instinto agressivo verdadeiramente
independente apareceu em Beyond the Pleasure Principle (1920g). (Ver,
especificamente, o Capítulo VI, ibid., 18, 52-5). Mas é de notar que mesmo aí,
e nos escritos posteriores de Freud (por exemplo, no Capítulo IV de The Ego and
the Id.), o instinto agressivo ainda era algo secundário, derivado do instinto
de morte autodestrutivo e primário. Isso é verdadeiro, ainda, quanto à presente
obra, embora aqui a ênfase esteja colocada mais nas manifestações do instinto
de morte voltadas para fora, e também quanto aos estudos ulteriores do problema
na última parte da Conferência XXXIII das New Introductory Lectures (1922a) e
em mais de um ponto do Esboço da Psicanálise (1940a [1938] Pequena Coleção das
Obras de Freud, Livro 7, IMAGO Editora, 1974), de publicação póstuma.Sem
embargo, é tentador citar um par de frases de uma carta escrita por Freud, em
27 de maio de 1937, à Princesa Marie Bonaparte, na qual parece aludir a uma
maior independência original da destrutividade externa: ‘A interiorização do
instinto agressivo é, naturalmente, o correspondente da exteriorização da
libido, quando ela se transfere do ego para os objetos. Teríamos um quadro
esquemático nítido se supuséssemos que, originalmente, ao início da vida, toda
a libido era dirigida para o interior e toda a agressividade para o exterior, e
que, no decorrer da vida, isso gradativamente se alterava. Mas talvez isso
possa não ser correto’.
É justo acrescentar que, em sua carta
seguinte, Freud escrevia: ‘Peço-lhe para não dar muito valor às minhas
observações sobre o instinto de destruição. Elas só foram feitas fortuitamente
e teriam de ser cuidadosamente pensadas antes de publicadas. Ademais, pouco há
de novo nelas.’
É óbvio, portanto, que O Mal-Estar na
Civilização é uma obra cujo interesse ultrapassa bastante a sociologia.
Partes consideráveis da primeira tradução
(1930) do presente trabalho foram incluídas em Civilization, War and Death:
Selections from Three Works by
Sigmund Freud (1939, 26-81), da autoria de Rickman.
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