Apesar de polêmico, o tema do silêncio é ainda pouco
explorado em psicanálise. Desde Freud e seus trabalhos originais sobre o
fenômeno da resistência, o silêncio do paciente é visto como forma particular
de resistência, mas, contemporaneamente, existe tendência para se passar a
compreendê-lo como maneira singular de se comunicar (1). No presente estudo
pretende-se delinear as diferentes facetas do silêncio, apontando para outros
possíveis significados que não o de resistência ao processo analítico.
O silêncio em psicanálise:
revisitando a literatura
Na literatura psicanalítica o silêncio foi primeiramente
interpretado como evidência do movimento de resistência do paciente ao processo
analítico. Isso decorre do fato de que o processo analítico tem como
pressuposto básico a livre-associação, que consiste na regra de ouro da
psicanálise. Nesse sentido, ao permanecer em silêncio, o paciente estaria
implicitamente violando um preceito fundamental do método psicanalítico. É como
se ele quebrasse uma regra essencial que havia sido pactuada por ocasião do
estabelecimento do contrato terapêutico, no qual ele se comprometera a dizer ao
analista tudo o que viesse à superfície de sua mente durante a sessão. Desse
modo, espera-se que o paciente colabore com o exame do material psíquico
mediante esforço voluntário de atenção, tentando não submeter suas associações
à censura prévia, que normalmente se manifesta sob a forma de pudor ou
vergonha, sentimentos que geralmente embutem juízos de valor, autocrítica e
auto-recriminação. É esperado, assim, que aquele que se submete ao método
psicanalítico se entregue ao livre sabor de suas associações verbais, que
seriam produzidas na atmosfera permissa que o analista buscaria instaurar e
preservar.
Uma vez silente, o paciente de algum modo infringe o que
havia combinado originalmente com o analista, de maneira que acaba se
insurgindo contra um preceito básico da psicanálise, sendo visto, então, como resistente ao processo terapêutico.
A questão do silêncio como manifestação que vai além da resistência
já foi abordada na literatura psicanalítica a partir de dois conceitos que o
definem: o sileo e o taceo(1). O sileo equivaleria ao silêncio estruturante,
representaria a ausência essencial de palavras para representar o que resiste à
significação, ou seja, o irrepresentável que constitui o inconsciente. Esse
fenômeno é definido como vazio de significações(1). Em contrapartida, o taceo
remeteria ao calar, ao silenciar do paciente, representaria, portanto, a
palavra não proferida, ao não-dito, a palavra interditada porque algo lhe faz
obstáculo, impedindo-a de ser enunciada, porém, não se trata de impossibilidade
estrutural de dizer. Desse modo, segundo a formulação lacaniana, o ato de
permanecer em silêncio não confere à pessoa uma ausência de linguagem(2), uma
vez que o silêncio sempre comunica algo que não pôde se manifestar no plano
verbal.
Na literatura recente, encontra-se que o silêncio pode
assumir diferentes significados, de acordo com o contexto em que é produzido.
Com o propósito de sistematizá-los, esses distintos significados que o silêncio
pode assumir no contexto psicanalítico foram separados em 10 categorias(1), que
podem ser sintetizadas do seguinte modo: simbiótico
— quando o paciente espera que o analista adivinhe, de maneira mágica, suas
demandas não satisfeitas; bloqueio —
quando ocorre um bloqueio da capacidade de pensar; inibição fóbica — medo de falar por apresentar intenso sentimento
de ansiedade paranóide relacionada ao medo de dizer alguma besteira, ou proferir algo que pode ser mal interpretado ou, ainda, por se temer
a quebra do sigilo em relação ao que é dito na sessão analítica; protesto — ocorre devido à intolerância
do paciente frente à situação assimétrica que caracteriza a relação com o
analista; nesse caso, o protesto ocorre pelo fato de o paciente achar que o
analista deve falar mais do que ele; controle
— maneira de testar a tolerância do analista e impedir que ele tenha material
psíquico disponível para construir interpretações que possam ferir sua autoestima;
desafio narcisista — nesse caso, o
paciente acredita que, em silêncio, triunfará sobre o analista e, assim, o
derrotará. Mas é bom lembrar que, de acordo com o pensamento lacaniano, no
curso de um diálogo quem cala permanece no poder, uma vez que é ele quem
confere significações ao que o outro diz; negativismo
— nesse caso, o silêncio pode representar uma forma de identificação com
objetos internos frustradores que não respondiam ao paciente ou, ainda, o
necessário e estruturante uso do não; comunicação primitiva —
captado pelos efeitos contra transferenciais que desencadeia no analista, o
silêncio do paciente pode fazer uma importante comunicação a respeito de seus
aspectos inconscientes e que ele não consegue transmitir verbalmente; regressivo — o silêncio arrastado por
longo período de tempo e com um relativo distanciamento pode representar a
busca de construção de um sentido na presença da mãe, ou seja, a capacidade
para estar só tal como formulada na psicanálise winnicottiana; elaborativo — aparece apenas como um
espaço de tempo para que o paciente possa refletir e integrar insights parciais
rumo à obtenção de um insigth total(1).
Nesse rol de categorias que permitem enquadrar os distintos
silêncios do paciente na sessão de psicanálise é possível acrescentar ainda uma
modalidade bastante peculiar que se observa no atendimento de pacientes mais
jovens: está-se, aqui, fazendo referência ao silêncio do adolescente. silente Nesse
aspecto em particular, um estudo destacou que, nessa etapa do desenvolvimento,
é comum que os pacientes permaneçam em silêncio na análise(3). Esse fenômeno se
deve ao não desenvolvimento pleno da capacidade de discriminar e abstrair;
desse modo, o adolescente não compreende a dimensão abstrata do como se que é
própria da interpretação. Assim, o jovem paciente tende a levar tudo para o
concreto, exigindo respostas imediatas do analista, chegando a mesclar, em
certos momentos, o real com o imaginário. Ao falar, o faz como se fosse adulto;
por várias vezes irá cobrar do analista opiniões e conselhos e, caso as
ponderações do analista contrariem seus pensamentos, intensos sentimentos de
frustração e mágoa poderão emergir na relação da dupla.
Frente à emergência de tais sentimentos, o adolescente tende
a reagir por meio de actings, ou seja, de passagens ao ato, que podem consistir
em faltas frequentes e consequente abandono da psicoterapia. Outra modalidade
muito usual de actings na psicoterapia de adolescentes se manifesta também por
meio de longos períodos de silêncio durante as sessões ou, até mesmo, pelo
silêncio absoluto que perdura durante muito tempo da análise.
Para a psicanálise contemporânea, é necessário que o analista
se atenha ao silêncio como uma forma de comunicação, de modo que possa pensá-lo
como um idioma desconhecido que precisa de tradução(1). Nos momentos de
silêncio o analista precisa, então, pensar nos tipos de comunicação não-verbal
estabelecidos pelo paciente, uma vez que durante o processo analítico existem
momentos em que as palavras não conseguem exprimir o que está acontecendo no
plano emocional, tal a intensidade com que são vivenciadas essas experiências.
Atualmente, pode-se dizer que há certo consenso de que o bebê
se comunica com a mãe não por meio de palavras, mas predominantemente por seu
comportamento e, sobretudo, pelo choro. Denominou-se de linguagem sígnica os
sinais emitidos para aliviar a tensão sem a representação do estímulo que a
originou (4). Tome-se como exemplo o choro do bebê: é a linguagem sígnica. São
sons que servem para aliviar a tensão, contudo, o que a originou ou incrementou
não é expresso por palavras, não pode ser discriminado. Cabe à mãe fazer a
decodificação da inquietação que está sendo veiculada pelo choro — ou seja,
cabe à mãe a tarefa de interpretação, emprestando seu aparelho mental para o
bebê realizar inicialmente as transformações que ele ainda não é capaz de
elaborar por conta própria.
Guardadas as devidas proporções e diferenças, é possível
transpor essa explicação para o âmbito da relação terapêutica, em que, por
vezes, não acontece linguagem simbólica, apenas a linguagem sígnica (1). Disso
se conclui que o analista deve estar preparado para a escuta das diferentes
formas de comunicação utilizadas pelo analisando. A modalidade de comunicação
aparece didaticamente separada em: verbal e não-verbal. Ambas, a priori, têm a
função de comunicar algo, contudo, nem sempre essa função é efetiva, às vezes o
discurso pode estar mais a serviço da incomunicação como forma de ataque aos
vínculos perceptivos (1).
O pensamento simbólico, próprio da condição humana, permite a
comunicação. É um pensamento que resulta de um trabalho de transformação, que
se insere no processo da hominização; já a linguagem sígnica se manifesta nas
formas psicossomáticas do adoecimento (4), onde houve falhas no processo de
simbolização.
Considerando esses pressupostos teóricos, o presente estudo
propõe-se a tematizar o silêncio na situação analítica. Para tanto ater-se-á,
aqui, às formas de comunicação não-verbais, que permitem subdivisões
específicas de expressão. Cada subdivisão solicita uma escuta especial (1).
A primeira dessas escutas especiais é a escuta da linguagem
pára-verbal. Esse termo se refere às mensagens que estão ao lado do verbo;
nesse caso, as palavras estão presentes, mas o analista permanece atento não
apenas a elas, mas também à entonação, volume, intensidade e amplitude da voz
do paciente. Dentro dessa percepção dos sentimentos que aparecem junto ao
verbo, também se deve considerar a escolha das palavras, a seleção de assuntos
e possíveis lapsos acompanhados pelo discurso (1).
A partir do momento em que o paciente chega ao consultório,
já passa a comunicar algo por meio de sua linguagem não-verbal, que pode ser
percebida pelo horário em que chega à sessão, o modo como se veste, a postura
física e a expressão facial, a maneira como se dirige ao analista e como o
cumprimenta, o modo como inicia a sessão, se induz o analista a realizar algum
tipo de papel, entre outras pistas. Durante a sessão, o paciente pode aguçar a
percepção do analista e sua escuta de gestos e atitudes por meio de sinais de
mímica facial, gestos sugestivos de impaciência, inquietação, contrariedade,
sofrimento ou alívio, choro ou riso (1).
A escuta do corpo se dá desde o início da vida: o bebê fala com sua mãe por meio de
sua gestualidade, pela coordenação de ações motoras, pelos movimentos
articulados de seu corpo. Na situação analítica, o corpo fala e se comunica de diferentes maneiras, por exemplo, o modo
como o paciente vivencia sua imagem corporal pode indicar a possibilidade de
despersonalização. Deve-se atentar também aos sinais dos cuidados corporais, à
higiene pessoal, às conversões, manifestações hipocondríacas e somatizações.
Essas reações mostram que alguma parte daquele corpo está funcionando como uma
caixa de ressonância para os conflitos psíquicos que não puderam alcançar uma
inscrição simbólica. É observação corriqueira da clínica psicanalítica o fato
de que aquilo que o corpo fala, por
vezes, é muito mais informativo do que certas
palavras que mal conseguem tangenciar a dor mental.
A linguagem metaverbal se caracteriza por uma vivência
ambígua por parte do paciente. Ele comunica algo verbalmente, que é anulado por
outro conteúdo, diferente e oposto ao verbalizado. Na situação analítica, isso
ocorre quando o paciente aparentemente aceita a interpretação oferecida pelo
analista, mas, na verdade, a anula em surdina, em um plano latente.
Por meio de devaneios, fenômenos alucinatórios e sonhos pode
emergir no contexto terapêutico a linguagem oniróide. Esses fenômenos podem ser
verbalizados ou não, podendo, inclusive, adquirir dimensão mística (1).
A escuta da conduta tem como aspecto mais importante a
expressão do fenômeno dos actings. Por muito tempo esse fenômeno foi visto
apenas de maneira negativa, contudo, tal conduta pode apresentar facetas
positivas que favorecem a estruturação do self. Sob esse aspecto é importante
fazer uma diferenciação: perceber os atos rotineiros da conduta do paciente na
vida cotidiana ou na análise não é o que se denomina de escuta da conduta (1).
Os sentimentos contra transferenciais também devem fazer
parte da escuta do psicanalista. É a escuta dos efeitos contra transferenciais (1).
A partir das sensações despertadas pelo paciente no terapeuta pode-se
estabelecer uma relação de empatia, uma vez que essas reações provocadas no
profissional tendem a ser análogas aos sentimentos vividos pelo paciente.
Apesar de lhe causarem desconforto e angústia, o paciente não consegue
expressar tais sentimentos em palavras.
Por fim, existe a escuta intuitiva. O analista deve ir para a
sessão de análise preparado para permitir que aflore uma intuição encontrada de
forma subjacente e latente (1), conforme postula o pensamento bioniano. O
analista deveria entrar na sessão em um estado psíquico especial, sem memória,
sem desejo e sem ânsia de entendimento (5). Ao cunhar a expressão sem memória, sem desejo, o pensamento bioniano levou às últimas consequências o estado de atenção flutuante
preconizado por Freud como próprio da disciplina mental que o analista deve
cultivar no exercício de seu ofício.
Pode-se separar essas formas de escuta para melhor explicação
didática, mas é preciso lembrar que elas ocorrem simultaneamente no processo
terapêutico. Junto com a comunicação verbal formam-se canais alternativos de
expressão que permitem ao paciente transmitir o que deseja. Constituem-se,
assim, canais de comunicação, que podem ser categorizados em quatro grupos: a livre
associação de ideias, as formas de comunicação não verbais, a intuição
não-sensorial e os efeitos contra transferenciais (1).
Apresentar-se-á, a seguir, material clínico de uma paciente
adolescente, o que permitirá articular a teoria revisada nesse estudo com o
objetivo de compreender os diferentes significados que o silêncio pode assumir
dentro da relação analítica com pacientes adolescentes.
MATERIAL CLÍNICO
Dados da paciente
Juliana tem 14 anos, é solteira e mora com os pais e duas
irmãs, sendo uma delas sua gêmea univitelina e a outra, dois anos mais velha.
Esteve em atendimento psicoterápico de orientação psicanalítica, realizado em
uma clínica-escola de psicologia, em contexto de estágio supervisionado, onde
era atendida duas vezes por semana, com sessões de 50 minutos.
Procurou o serviço espontaneamente e relatou que já havia
feito psicoterapia anteriormente. Referiu ter recebido o diagnóstico de
transtorno obsessivo-compulsivo. Aludiu, ainda, que, com frequência, se sentia
triste e que chorava quase todos os dias. Alega que havia abandonado os
acompanhamentos psicoterápicos anteriores por dificuldades financeiras.
Frequentava escola regularmente, cursando a oitava série do
ensino fundamental na mesma escola e turma que sua irmã gêmea. Dizia não gostar
de ir à escola, nem de estudar e que, por várias vezes, ao acordar, pensava em
alguma desculpa para poder faltar às aulas. Ainda sobre seus estudos, referiu
que se sentia pressionada para sempre tirar boas notas ir melhor que minha irmã
e, por sentir-se pressionada, não conseguia estudar direito para as provas, o
que a deixava bastante estressada e triste.
Fazia ainda aulas de diversas modalidades de dança, além de
curso de inglês e catecismo. Dizia gostar muito das aulas de balé e que as
fazia por prazer. Falou que gostava de dançar e que na academia se sente bem e
que não fazia por obrigação, como as demais atividades.
A respeito dos relacionamentos familiares, referiu que
brigava muito com as duas irmãs, que se juntavam para deixá-la estressada, pois
bagunçavam seu quarto e riam de seu modo de agir, recheado de manias, regras e
rituais. O pai era tido como figura ausente por trabalhar demais e a mãe como
alguém que, por vezes, a ajudava a se defender das irmãs. Porém, em outros
momentos, assim como o pai, a mãe ria das brincadeiras feitas pelas irmãs contra a paciente. Esse fato a deixava bastante incomodada.
Juliana contou que tinha algumas amigas com quem gostava de
conversar e passear, mas não conseguia contar para elas como se sentia triste
em determinadas situações. Guardava esse sentimento só para si, com medo de ser
mal compreendida pelos outros.
Vinha para os atendimentos trazida pela mãe, que, no início,
a aguardava na sala de espera e, com o passar do tempo, a deixava e vinha
buscá-la no horário do término da sessão. Chegava sempre pontualmente às
sessões, tendo faltado apenas uma vez, justificando antecipadamente essa falta.
EVOLUÇÃO DO CASO
Desde o encontro em que foi realizada a entrevista inicial
com a paciente, ela se mostrou quieta e evasiva; respondia apenas àquilo que
era perguntado. Trazia conteúdos que indicavam forte exigência para consigo
mesma. Parecia inquieta na presença da terapeuta, falando pouco sobre si.
Falava baixo, chorava em alguns momentos de maior densidade psicológica. A
terapeuta não conseguia perceber claramente o que trazia Juliana a essa
primeira entrevista. Chegou a questionar qual seria sua real motivação para o
início do processo terapêutico e suas expectativas em relação a ele.
T— Em que você acha que eu poderei te ajudar aqui?
P— Eu não quero mais ficar triste, chorar como eu chorava no
ano passado. Quero saber por que me sinto assim.
A partir dessa comunicação a terapeuta percebeu que ela havia
recorrido à clínica por acreditar que precisava de ajuda. Pareceu genuína em
seus sentimentos e ansiosa por receber apoio terapêutico. Apesar disso, durante
os primeiros encontros, a terapeuta não entendia bem porque Juliana permanecia
em silêncio durante a maior parte das sessões.
Apesar de angustiantes para a terapeuta iniciante, os longos
períodos em que Juliana permanecia calada não passavam a impressão de
resistência à análise. Ela vinha a todas as sessões, faltara apenas uma vez,
tendo inclusive justificado sua impossibilidade de comparecer. Contudo, em
determinada sessão foi questionada se vinha por vontade própria ou por ser
trazida pela mãe, ao que a paciente respondeu venho porque eu quero, porque eu
gosto de estar aqui, o que mostra envolvimento e investimento na psicoterapia.
A angústia suscitada na terapeuta a mobilizava no sentido de
quebrar o silêncio, procurando um canal pelo qual pudesse entrar em contato
mais íntimo com a paciente. A terapeuta sentia-se fracassada a cada nova longa
pausa da paciente. Ainda não conseguia se ater às comunicações não verbais
estabelecidas a cada encontro e às potencialidades de compreensão que elas
poderiam proporcionar.
Pensou, então, que essas interferências em seu silêncio
podiam despertar-lhe o sentimento de invasão, assim como ela relatava que
ocorria em sua casa.
P— Lá em casa é assim, minhas irmãs ficam indo no meu quarto
toda hora, por causa do computador. Entram, ligam a TV, ficam na Internet, meu
quarto é como se fosse a sala. Isso me incomoda, elas tiram tudo do lugar!
Pode-se pensar que as intervenções no momento de silêncio poderiam
ser compreendidas por Juliana como se a terapeuta estivesse invadindo o seu
quarto (possível representação psíquica de sua mente), tirando tudo do lugar (isto é, revirando seus conteúdos psíquicos). Sendo assim, seu quarto
poderia representar, do ponto de vista psíquico, seu mundo interno, sua
organização psíquica, assim como o tirar tudo do lugar poderia equivaler,
simbolicamente, ao movimento de se aproximar de seus sentimentos e pensamentos.
Assim, o silêncio em que Juliana mergulhou logo após essa
interpretação pode ser pensado como um desejo de proteger sua autoestima: se
ela não mostrasse o que tinha no quarto, a terapeuta não poderia bagunçar,
preservando a ordem preestabelecida por ela. Seria o que a literatura
psicanalítica pontua como o silêncio que busca testar a tolerância do terapeuta
(1), além de proteger o paciente de possíveis desestruturações em sua autoestima,
pois a ausência de material verbal fazia com que a terapeuta se sentisse
incapaz de agir e oferecer interpretações — por ela consideradas ameaçadoras
para a integridade de seu self.
Deixá-la em silêncio por longos períodos foi uma decisão
difícil de ser tomada. A terapeuta sentiu que precisaria estar ali à
disposição, de forma não-intrusiva, sem intervir, mas também de modo a não
reforçar o sentimento de desamparo. Juliana até então não se sentia plenamente
à vontade na situação de análise. Por diversas vezes iniciou a sessão trazendo
conteúdos referentes à cobrança sentida em relação à escola, onde suas notas
deviam ser sempre altas porque não podia decepcionar ninguém. Certo dia, a
terapeuta fez o seguinte comentário:
T— Lembrei de algumas vezes em que você chegou e ficou em
silêncio, depois me disse que não sabia o que dizer, que não tinha o que me
contar. Será que isso não acontece porque você pensa que tem algo que seja certo para me falar?!
P—Hum...(risos).
Aparentemente, essa interpretação transferencial não surtiu
muito efeito, contudo, ainda na mesma sessão, Juliana foi capaz de se permitir
fazer associações livres sabe, lembrei de uma coisa, nem sei se tem a ver, mas
eu vou contar. Pode-se postular, então, que o silêncio que permeou as sessões,
na maioria das vezes, ocorria por medo de dizer algo que pudesse parecer uma besteira ou um erro aos ouvidos do analista,
resultado de uma inibição fóbica perante o medo de ser julgada indevidamente
pelo outro.
Ao perceber o medo que Juliana sentia em se expor na sessão,
por imaginar que a terapeuta poderia fazer algum tipo de censura ao que fosse
dito, uma mudança se operou. A terapeuta retomou parte do contrato,
esclarecendo que durante a terapia ela poderia falar o que quisesse, o que
sentisse e o que pensava. A terapeuta não estava ali para julgá-la ou lhe dar
uma nota, como uma professora, mas para acolher tudo o que ela quisesse falar,
na medida em que se sentisse segura e confiante para se expor, porque essa
abertura era o mais importante no contexto da psicoterapia.
A despeito disso, os silêncios continuaram. A terapeuta
percebeu, então, que teria que ficar atenta aos outros modos encontrados por
Juliana para se comunicar. Notou que ela, ao se dirigir à sala de atendimento,
caminhava vagarosamente poucos passos à sua frente, até que ficassem lado a
lado. Sentiu que ela precisava manter alguém ao seu lado, com quem pudesse
permanecer, sentir que estavam juntas sem o compromisso de acertar sempre,
apesar do rigor da própria cobrança.
Com o decorrer dos atendimentos Juliana pareceu ficar cada
vez mais à vontade. Nos momentos de silêncio, ficava pensativa, parecia conseguir
estar mais consigo mesma na presença da terapeuta. Era um momento só dela, que
não precisava dividir com ninguém, como sempre havia feito em sua vida,
dividindo tudo com a irmã gêmea.
Assim, pode-se perceber esse silêncio como manifestação de um
movimento regressivo, pois, na presença da psicoterapeuta, ela descobrira que
poderia elaborar a capacidade de estar só, assim como o bebê faz em relação à
mãe. Esse fenômeno é descrito na teoria psicanalítica como a capacidade para
estar só (6). Em algumas ocasiões, junto de sua mãe, o bebê passa por momentos
de desorganização de seus elementos psíquicos. Essas experiências são
necessárias para que ele possa, posteriormente, elaborá-las e (re)integrá-las.
Necessitar estar integrado o tempo todo pode ser ansiogênico nessa etapa do
desenvolvimento emocional.
Por volta da vigésima quinta sessão, Juliana referiu melhora
de alguns sintomas:
P— Eu até que tô mais calma, não tenho nem brigado mais com a
Daniela. Não tenho me estressado mais como antes. Tem uma menina na escola que
ficava me cutucando e agora eu não fico mais atrás, na frente dela. É, tô menos
estressada (risos) (...) eu tô mais calma mesmo (...) eu penso nas coisas e
volto a pensar desse jeito, que não adianta ficar nervosa senão não consigo
estudar. (...) E fui bem na prova, acabei tirando uma nota boa.
Desse modo, pode-se inferir que o processo terapêutico estava
começando a surtir efeito e que essa maneira de estar ali, da maneira como
estava podendo exercitar, utilizando-se inclusive do silenciar, possivelmente
estava sendo útil para ela. O poder estar junto de alguém disponível apenas
para si, que ajude a modular suas relações com o mundo, parece lhe ter
permitido descobrir seus próprios valores, trazendo um feixe de luz e esperança
de transformação em seu viver.
CONCLUSÕES
Nos fragmentos do processo terapêutico aqui apresentado,
pode-se destacar diferentes facetas do silêncio, sugerindo a possibilidade de
olhar para esse fenômeno não apenas como resistência ao processo analítico.
Essa mudança de perspectiva favorece novas possibilidades de acolhimento para o
sofrimento psíquico do adolescente. É importante que o psicoterapeuta esteja
atento para outros canais de comunicação que não o verbal, estabelecidos a cada
encontro, uma vez que esses canais, especialmente na psicoterapia de
adolescentes, são tão ou mais reveladores do que os conteúdos verbais.
A paciente em análise pôde recordar, repetir e elaborar
algumas de suas experiências emocionais, mesmo sem comunicá-las por meio da
livre-associação (7). Mesmo envolta em seu silêncio protetor, pôde fazer uso
proveitoso do processo terapêutico, mostrando-se interessada e mantendo-se
presente e esperançosa. O que indica que, mesmo na ausência de palavras, há
possibilidades de captação da comunicação inconsciente que se processa na
intimidade da relação analítica, desde que o terapeuta esteja sensibilizado
para captar outras formas de abertura do inconsciente.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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clínica: uma abordagem didática. Porto Alegre: Artmed; 1999.
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Documentário; 1973.
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Bras. Psicanal. 1994; p 28(1): 153-64.
5 Bion WR. Atenção e interpretação. São Paulo: Imago; 1973.
6 Winnicott DW. A capacidade para estar só. In: Winnicott DW.
O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do
desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas; 1983 p. 31-7.
7 Freud S. Recordar, repetir, elaborar (novas recomendações
sobre a técnica da psicanálise II). In: Edição standard brasileira das obras
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191-203.