De modo geral, o termo educação
profissional já constava como proposta das reformas educacionais defendidas
pelos arautos do escolanovismo, nas décadas de 1920 e 1930, como Fernando
Azevedo (1931), principal mentor da ideia de uma educação pública, gratuita e
laica. Ainda que com ideais liberais e de preparação para o trabalho, a escola
é vislumbrada naquele contexto como espaço privilegiado para o desenvolvimento
de práticas e conteúdos de saúde visando à formação dos futuros trabalhadores,
de modo a possibilitar o aumento da sua capacidade produtiva.
A ‘educação profissional em saúde’
foi permitida legalmente, no Brasil, a partir da Lei 4.024/61. Até então, o
ensino técnico estava organizado com base nas Leis Orgânicas de Ensino,
promulgadas, durante o Estado Novo, pelo ministro da Educação e Saúde, Gustavo
Capanema (Lima, 1996). Estas tratavam, porém, especificamente, da formação de
quadros profissionais para a indústria, o comércio, a agricultura e a formação
de professores, o que não impediu que na década de 1940 fosse aprovada
legislação educacional para a área de enfermagem, que busca regular a formação
técnica dos práticos de enfermagem (Decreto-Lei n. 8.778/ 1946) e dos
auxiliares de enfermagem (Lei n. 775/1949), para o então incipiente e pouco
desenvolvido mercado de trabalho hospitalar.
A partir dessa época, mais
precisamente no final da década de 1950, começa a predominar, no discurso de
estudiosos e técnicos de instituições internacionais, uma concepção de
desenvolvimento que se constitui, ao mesmo tempo, em uma teoria da educação, ambas
inspiradas na teoria do ‘capital humano’ de Theodore W. Schultz, que lhe valeu
o Prêmio Nobel de Economia em 1979. No primeiro caso, reorienta a estratégia da
Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) que passa a preconizar na
década de 1960 o desenvolvimento integrado, a partir do planejamento
econômico-social, como instrumento de superação do subdesenvolvimento. No
segundo, irá influenciar toda a política educacional brasileira desenhada a
partir da segunda metade dos anos 60, especialmente a ‘educação profissional em
saúde’, materializando-se de forma acabada na década de 1970, com a Lei
5.692/71, que reformula o ensino de 1° e 2° graus no país, implantando
compulsoriamente a terminalidade profissional atrelada a este último grau de
ensino.
Os estudos sobre economia da educação
e economia da saúde, de matriz neoclássica, ofereceram o suporte conceitual e
analítico necessário para o desenvolvimento da ideia de que os gastos com os
setores sociais não se limitavam a despesas com consumo, mas eram investimentos
rentáveis que o Estado deveria assumir como meio de promoção do desenvolvimento
econômico. Nesse sentido, os dispêndios em programas de saúde e na melhoria da
organização sanitária significavam a promoção da saúde e, consequentemente, uma
maior produtividade do trabalho. Em contrapartida, o investimento em educação,
por ser esta produtora de capacidade de trabalho, significava, potencialmente,
o aumento da renda e a posse de um capital. É no bojo dessa discussão que
emerge a noção de recursos humanos em saúde, para designar a mão-de-obra
engajada no setor.
O marco internacional para adoção
dessa visão foi a Carta de Punta del Este, em 1961, que elaborou o Primeiro
Plano Decenal de Saúde para as Américas, ratificado no Brasil, em 1967, na IV
Conferência Nacional de Saúde, cujo tema central foi recursos humanos para as
atividades de saúde. Nesse contexto, difunde-se a ideia da formação de técnicos
de saúde de nível médio em função das necessidades de um suposto mercado de
trabalho para estes profissionais surgidas em decorrência do crescimento
econômico acelerado no tempo do ‘milagre econômico’ brasileiro (1968-1974) e da
introdução de sofisticados equipamentos médicos no processo de trabalho em
saúde, no âmbito hospitalar.
De fato, os serviços de saúde foram
um importante pólo de criação de postos de trabalho nesse período, e isso está
diretamente associado ao modelo de saúde adotado no pós-64, de ampliação em
larga escala da produção de serviços médicos hospitalares. Porém, isso ocorreu
às custas de duas categorias polares: os atendentes de enfermagem, com nível de
escolaridade equivalente às quatro primeiras séries do atual ensino
fundamental, e os médicos. Portanto, como aponta Frigotto (1986), no contexto
da recomposição do capitalismo em sua fase monopolista, o fetiche e a
mistificação da necessidade de formação técnica média para um suposto mercado
de trabalho veiculada pela teoria do ‘capital humano’ cumpriu um papel
político, ideológico e econômico específicos. No plano político-ideológico, essa
teoria veicula a ideia de que o subdesenvolvimento não diz respeito às relações
de poder e dominação, sendo apenas uma questão de modernização de alguns
fatores, onde os recursos humanos qualificados – ‘capital humano’ – constituem
o elemento fundamental. Em contrapartida, passa a ideia de que o antagonismo
capital-trabalho pode ser superado mediante um processo meritocrático – pelo
trabalho, especialmente pelo trabalho potenciado como educação, treinamento
etc. No plano econômico, o conceito de ‘capital humano’ estabelece, de um lado,
o nivelamento entre capital constante e capital variável (força de trabalho) na
produção de valor; coloca o trabalhador assalariado como um duplo proprietário:
da força de trabalho – adquirida pelo capitalista – e de um capital adquirido
por ele – quantidade de educação ou de ‘capital humano’. Por outro lado, esse
conceito reduz a concepção de educação e, por extensão, a educação profissional
a mero fator técnico da produção.
Sendo assim, verificou-se, no setor
saúde, que não só a formação de técnicos de enfermagem, por exemplo, não
determinou o seu ingresso no mercado de trabalho – e mesmo aqueles que
conseguiram não se garantiu a ocupação do cargo – como essa concepção
tecnicista de educação profissional contribuiu, entre outros, para naturalizar
as ações feitas pelos trabalhadores técnicos em saúde: reduzir a formação
profissional a meros treinamentos; conformar os trabalhadores à divisão técnica
do trabalho em saúde; manter a hegemonia do ideário cientificista e tecnicista
na área; incentivar a crença nas técnicas pedagógicas como instrumento para
resolver problemas da formação técnica e de saúde da população; estabelecer
análises lineares e imediatas entre educação e mercado de trabalho em saúde, de
modo a adequar a formação às necessidades desse mercado, reduzindo o ensino às
tarefas do posto de trabalho. Contribuiu, em síntese, para a adaptação e
conformação dos trabalhadores ao existente, numa perspectiva economicista,
instrumentalista, pragmática e moralizadora (Pereira, 2006).
Antagônica a essa concepção de
adaptação, foi sendo construída nos anos 80, ao mesmo tempo, uma concepção de
educação que a recoloca no âmbito das práticas sociais, isto é, como uma
prática constituída e constituinte das relações sociais e uma concepção de
escola, cujo eixo básico centra-se na questão da escola unitária, de formação
tecnológica ou politécnica e na necessidade de aprofundamento do sentido e dos
desafios de tomar-se o trabalho como princípio educativo. Nesse debate, a
relação trabalho-educação é colocada em novo patamar, buscando sobretudo
resgatar a dimensão contraditória do fenômeno educativo, seu caráter mediador e
sua especificidade no processo de transformação da sociedade. Se a escola tende
a mediar os interesses do capital e a adaptação ao existente, não é da sua
natureza ser capitalista. Nesse sentido, abre-se no seu interior a
possibilidade e a necessidade de construir outras mediações que a articulem com
os interesses dos trabalhadores no processo de sua qualificação, mediações que
resgatem o homem em sua tripla dimensão – individualidade, natureza e ser
social – e o saber científico-tecnológico produzido historicamente por esse
mesmo homem.
Desse último ponto de vista, o papel
do ensino médio e da educação profissional em saúde deveria ser o de recuperar
a relação entre conhecimento e a prática do trabalho. Isto significaria
explicitar como a ciência se converte em potência material no processo de
produção de mercadorias, de maneira geral, e nos serviços de saúde, em particular.
Assim, seu
horizonte deveria ser o de propiciar aos alunos o domínio dos fundamentos
científicos das diversas técnicas e não o mero adestramento em técnicas
produtivas. A noção de politécnica postula uma formação que a partir
do próprio trabalho social desenvolva a compreensão das bases de organização do
trabalho em nossa sociedade. Trata-se da
possibilidade de formar profissionais em um processo onde se aprende
praticando, mas, ao praticar, se compreendem os princípios científicos que
estão direta e indiretamente na base desta forma de organizar o trabalho na
sociedade. Implica ainda que o processo de trabalho desenvolva em uma
unidade indissolúvel os aspectos manuais e intelectuais, pois são
características do trabalho humano. A separação dessas funções é um produto
histórico-social e não é absoluta, mas relativa (Saviani, 2003; EPSJV, 2005;
Ramos, s.d.).
À educação cabe, neste contexto,
contribuir para a emancipação dos trabalhadores em relação a uma ordem social e
econômica excludente e alienada, que tende a transformar a saúde e a educação
em uma mercadoria como outra qualquer, e conseqüentemente ter como meta
transformar a sociedade e tornar realidade o direito universal à saúde e à
educação. Considerando o trabalho e a ‘educação profissional em saúde’, Pereira
(2006) destaca algumas premissas dessa concepção, tais como: os trabalhadores
técnicos de saúde desenvolvem trabalho complexo, na perspectiva de valor de uso
e, portanto, precisam de formação qualificada; a defesa da escola e da
escolaridade como política pública e como condição para a formação dos
trabalhadores técnicos em saúde; a defesa da explicitação da dimensão política
e técnica da prática educativa na saúde; a crítica ao positivismo, ao
cientificismo e ao tecnicismo; o trabalho como princípio educativo e a ideia da
qualificação como construção social (Castro, 1992; Hirata, 1994).
As reflexões em torno do ideário da
politecnia tinham como fulcro as transformações que estavam ocorrendo no mundo
do trabalho com a introdução de novas tecnologias informáticas e
biotecnológicas e novas formas de energia que se intensificaram no decorrer dos
anos 90, chegando a ser incorporado no projeto de Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional apresentado pelos setores educacionais progressistas à Câmara
dos Deputados em 1988. Entretanto, esse projeto de LDB foi derrotado pelo do
Senador Darcy Ribeiro, aprovado em 20 de dezembro de 1996, com a Lei 9.394, que
levou a diversas regulamentações posteriores, entre as quais, a regulamentação
curricular com base na pedagogia das competências, que se tornou a referência
fundamental para a política educacional de maneira geral, mas em especial para
a ‘educação profissional em saúde’.
Originária do mundo dos negócios, a
noção de competência, assim como a de sociedade do conhecimento, emerge como
produto e resultado da crise do modelo fordista de desenvolvimento. Uma crise
da acumulação, concentração e centralização de capital, que implicou um novo
tipo de organização do trabalho, baseado em tecnologia flexível, em contraposição
à tecnologia rígida do sistema taylorista-fordista, e na formação de um
trabalhador também flexível, baseada na pedagogia das competências.
Na área de saúde, a noção de
competência foi difundida com a instituição do Sistema de Certificação de Competências
do Projeto de Profissionalização dos Trabalhadores na área de Enfermagem do
Ministério da Saúde (Profae/MS), a partir do ano 2000, e de acordo com Ramos
(s.d.), apesar de (re)construir essa noção numa perspectiva contrária àquela
que predomina na organização de sistemas de competências profissionais, de
corte funcionalista e condutivista, e de relacioná-la ao desenvolvimento da
autonomia dos trabalhadores em saúde para enfrentar os acontecimentos dos
processos de trabalho, na sua complexidade, heterogeneidade e
imprevisibilidade, essa opção pedagógica acaba não contribuindo para o
fortalecimento da relação entre o mundo da escola e do trabalho. Entre outros
motivos, por levar à ‘desintegração curricular’, ao tentar reproduzir as
situações de trabalho nos espaços formativos.
Do ponto de vista legal – a atual
Legislação Educacional, conforme prevista no art. 39 da Lei 9.394 e no Decreto
5.154, de 23 de julho de 2004 –, a educação profissional em saúde compreende a
formação inicial ou continuada, a formação técnica média e a formação
tecnológica superior. Ela pode ser realizada em serviços de saúde (formação
inicial ou continuada) e em instituições de ensino (formação inicial ou
continuada, formação técnica e tecnológica). A formação técnica compreende as
formas de ensino integrado, concomitante ou subseqüente ao ensino médio. Tanto
a formação técnica como a formação tecnológica se organizam atualmente em doze
subáreas de formação em saúde, conforme os Referenciais Curriculares Nacionais
da área (Brasil/Ministério da Educação, 2000). São elas: biodiagnóstico,
enfermagem, estética, farmácia, hemoterapia, nutrição e dietética, radiologia e
diagnóstico por imagem, reabilitação, saúde bucal, saúde visual, segurança do
trabalho e vigilância sanitária. A área profissional saúde diz respeito às
ações integradas referentes às necessidades individuais e coletivas, com base
em modelo que ultrapasse a ênfase na assistência médico-hospitalar. As ações de
saúde se desenvolvem em locais, tais como: centros de saúde, postos de saúde,
hospitais gerais e especializados, laboratórios, domicílios, centros
comunitários, escolas e outros espaços sociais.
Portanto, a educação profissional em
saúde é um objeto de disputa e embate de projetos societários. Apesar da
hegemonia de ideias e práticas de educação profissional que têm como objetivo a
adaptação e conformação dos trabalhadores ao existente e ao mercado de
trabalho, assim como às necessidades de manutenção e transformação do capital,
existem projetos contra hegemônicos que lutam por uma educação e saúde que
tenham como finalidade a construção de uma sociedade mais humana e solidária
(Pereira & Ramos, 2006). São exemplos, na ‘educação profissional em saúde’,
a ‘concepção ensino e serviço’, desenvolvida pelas Escolas Técnicas do Sistema
Único de Saúde (Etsus), e a ‘concepção politécnica’, desenvolvida pela Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz).
Essas experiências são realizadas no cenário histórico e social do capitalismo
tardio, um cenário contraditório e complexo, em que se confrontam as posições
progressistas, que defendem e reafirmam a saúde como um direito universal, e a
realidade da formação recente do capitalismo em nosso país, que tende a tornar
a saúde uma mercadoria.
A educação profissional em saúde no
seu viés de transformação afirma a formação omnilateral e a humanização do
trabalhador pelo trabalho. O caráter politécnico do ensino, como diz Frigotto
(1985, p. 4), “decorre da dimensão de um desenvolvimento total das possibilidades
humanas, onde, como afirma Marx, na Ideologia Alemã, os pintores serão ‘hombres
que además pintem’.
Fonte:
http://www.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/eduprosau.html
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