Na Grécia antiga, quando a sociedade se mantinha pela
utilização do trabalho escravo, e a escola era o lugar do ócio e da prática de
esportes, as funções intelectuais ficavam restritas a uma pequena parcela da
sociedade. Na Idade Média, a sociedade era sustentada pelo trabalho servil,
pelo cultivo da terra, desenvolvido segundo técnicas simples e reiterativas que
não exigiam a incorporação de conhecimentos sistemáticos. “Quem se dedicava ao trabalho intelectual era a parcela dos
intelectuais, fundamentalmente concentrada no clero. As escolas, naquele
momento histórico, se restringiam a essa parcela e, por isso, eram chamadas
Escolas Monacais” (Saviani, 2003, p. 134). Na Idade Média a transmissão dos
conhecimentos profissionais estava situada fora dos estabelecimentos escolares
os quais eram empregados apenas para o melhor desenvolvimento intelectual da
juventude.
À revolução industrial correspondeu uma Revolução
Educacional: aquela colocou a máquina no centro do processo produtivo; esta
erigiu a escola em forma principal e dominante de educação (Saviani, 2006). A
transmissão, via escola, de conhecimentos técnicos e científicos, corresponde
ao aparecimento de novas divisões e novas funções na hierarquia social do
trabalho. As primeiras escolas de engenheiros são escolas para a formação de
quadros funcionais especializados para o Estado. Essas escolas de ciências
aplicadas articulam os conhecimentos técnico-científicos e as práticas sociais.
A partir delas o conhecimento é difundido, mas elas são também locais de
articulação entre o saber e o poder. O aparecimento dessas escolas se faz
acompanhar de uma redefinição dos conteúdos a serem transmitidos, o que, por
sua vez, leva a uma reorganização dos conhecimentos exigidos.
No dizer de Manacorda (1994, p. 246), fábrica e escola nascem
juntas, em um movimento que implica também a “passagem definitiva da instrução
das Igrejas para os Estados”: “as leis que criam a escola de Estado vêm juntas
com as leis que suprimem a aprendizagem corporativa” (Manacorda, 1994, p. 249).
É nesse momento de mudança não só do modo de produção, mas também do modo de
vida do homem, que nasce o ideal de escola elementar gratuita e para todos,
tanto na América do Norte como na França revolucionária, pós-1789. O período
revolucionário afirma o direito de todos à educação e renova seus conteúdos.
A incorporação de uma cultura técnico-científica voltada para
a preparação profissional aos conteúdos escolares até então essencialmente
especulativos e teóricos implica uma revolução, que para Petitat (1994) talvez
seja a mais importante desde a própria aparição da escola. Esta cultura, em um
primeiro momento, não encontrou espaço nas escolas então existentes, e surgiram
novas instituições: academias, escolas técnicas e profissionais.
No Brasil, a predominância de uma “mentalidade
jurídico-profissional, voltada inteiramente para as carreiras liberais e para
as letras, a política e a administração” (Azevedo, 1996, p.626) faz com que o
ensino técnico-profissional seja relegado a um plano secundário. De um lado, o encargo dos trabalhos pesados
dado inicialmente aos índios e aos escravos; de outro, a espécie de
educação que os jesuítas ofereciam criou, no Brasil, uma mentalidade que levou
ao desprezo pelo ensino de ofícios. Essa mentalidade imperou ao longo de nossa
história, da descoberta até quase a República.
Durante esse período, a aprendizagem profissional era
destinada aos órfãos e desvalidos, não fazendo parte das ações desenvolvidas
nas escolas; não era entendida como ação afeta à instrução pública, mas como
ação de caridade. Mais tarde, o ensino profissional é incluído no conjunto
geral da instrução, mas entendido como necessariamente de grau elementar,
continuando a ser considerado como deprimente e desmoralizante.
Os liceus de artes e ofícios, criados em 1858, traziam em
seus programas uma nova filosofia, uma outra maneira de encarar o ensino
técnico-profissional, que deixava de ser meramente assistencial e elementar. A
multiplicação de liceus de artes e ofícios em várias províncias parece indicar
que em todo o país surgiam novas ideias com relação ao ensino necessário à
indústria. A abolição da escravatura
também contribuiu para uma nova maneira de encarar o trabalho que não fosse
intelectual.
No entanto, a velha concepção destinando esse tipo de ensino
aos deserdados da fortuna persiste mesmo depois da instauração da República.
Quando Nilo Peçanha, em 1909, cria as escolas de aprendizes artífices (Decreto
n. 7.566/09), destina essas escolas aos ‘deserdados da fortuna’. A criação
dessa rede de escolas é, segundo Ciavatta (1990, p. 330), a expressão
histórica, naquele momento, “da questão social manifesta no desamparo dos
trabalhadores e de seus filhos e na ausência de uma política efetiva de
educação primária”.
O contexto da
industrialização e da revolução de 1930 destaca a relação entre trabalho e
educação como problema fundamental. A Constituição de 1937, entretanto, ainda explicita
claramente o dualismo escolar e a destinação do ensino profissional aos menos
favorecidos:
O ensino
pré-vocacional e profissional destinado às classes menos favorecidas é, em
matéria de educação, o primeiro dever do Estado. Cumpre-lhe dar execução a esse
dever, fundando institutos de ensino profissional e subsidiando os de
iniciativa dos Estados, dos Municípios e dos indivíduos ou associações
particulares e profissionais.
O Manifesto dos Pioneiros identifica a existência, no Brasil,
de dois sistemas paralelos e divorciados de educação, fechados em
compartimentos estanques e incomunicáveis:
O sistema de ensino primário e profissional e o sistema de
ensino secundário e superior teriam diferentes objetivos culturais e sociais,
constituindo-se, por isso mesmo, em instrumentos
de estratificação social. A escola primária e a
profissional serviriam à classe popular, enquanto que a escola secundária e a
superior à burguesia. (Cunha,
1997, p. 13)
Naquela época, as escolas profissionais da Prefeitura do
Distrito Federal exigiam, para matrícula, que os alunos apresentassem atestado
de pobreza. Embora as escolas técnicas profissionais continuassem destinadas
aos pobres, percebia-se nitidamente uma mudança na concepção da ‘educação
profissional’, na medida em que essas escolas passavam a ser encaradas como
escolas formadoras de técnicos capazes de desempenhar qualquer função na
indústria. “O trabalho e o assistencialismo constituem-se fundamentos de
processos educativos associados à ‘escola do trabalho’, segundo dois eixos
fundamentais: a regeneração pelo trabalho e o trabalho para a modernização da
produção” (Ciavatta, 1990, p. 328).
A industrialização, a partir principalmente dos anos 30 do
último século, modifica lentamente a sociedade brasileira, tornando necessária
uma nova proposta de educação: faz-se
necessário preparar trabalhadores para a indústria, dentro de uma nova ordem
social, gerada pela acumulação do capital. A necessidade de preparação de
mão-de-obra para a indústria implica uma mudança de concepção do ensino
profissional. De uma aprendizagem mais próxima do ofício era necessário passar
para uma aprendizagem que introduzisse o domínio das técnicas, da
parcelarização do trabalho e da adaptação à máquina, de maneira a disciplinar a
força de trabalho e adequá-la à organização fabril. Nesse quadro, a ‘educação
profissional’ situa-se em um contexto maior de demandas de uma nova sociedade: a sociedade industrial. Além de
preparar tecnicamente para o trabalho, é preciso também disciplinar os jovens
para as atividades produtivas e a divisão do trabalho.
Nos anos 30 e de novo nos anos 40 reforma-se o ensino
secundário. A partir de 1942 são baixadas por decreto-lei as conhecidas “leis orgânicas da educação nacional”
para o ensino secundário, o ensino industrial, o ensino comercial, o ensino
primário, o ensino normal e o ensino agrícola. A Constituição de 1937, ao
determinar que o ensino vocacional e pré-vocacional são dever do Estado, a ser
cumprido com a colaboração das empresas e dos sindicatos econômicos, propiciou
a definição das Leis Orgânicas do Ensino Profissional e a criação de entidades
especializadas como o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e o
Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), bem como a transformação
das antigas escolas de aprendizes artífices em escolas técnicas federais.
No conjunto das Leis Orgânicas da Educação Nacional, o ensino
secundário e o ensino normal têm como objetivo “formar as elites condutoras do
país”, enquanto para o ensino profissional define-se como objetivo oferecer
“formação adequada aos filhos dos operários, aos desvalidos da sorte e aos
menos afortunados, aqueles que necessitam ingressar precocemente na força de
trabalho”. A herança dualista perdura e é explicitada (CNE, 1999).
Aprofunda-se, na época, a ênfase na participação da escola na
formação da mão-de-obra de maneira a contribuir para o aumento da produtividade
do trabalho e da riqueza nacional. A
Revolução Industrial, o desenvolvimento do capitalismo e a incorporação do
conhecimento e da ciência ao processo produtivo trouxeram uma nova concepção
sobre o valor do trabalho e sobre o caráter teórico-prático do fazer e da técnica.
No início da República, o ensino secundário, o normal e o
superior, eram competência do Ministério da Justiça e dos Negócios Interiores,
e o ensino profissional, por sua vez, era afeto ao Ministério da Agricultura,
Indústria e Comércio. A junção dos dois ramos de ensino, a partir da década de
1930, no âmbito do mesmo Ministério da Educação e Saúde Pública foi apenas
formal, não ensejando, ainda, a necessária e desejável ‘circulação de estudos’
entre o acadêmico e o profissional. Apenas na década de 1950 é que se passou a
permitir a equivalência entre os estudos acadêmicos e profissionalizantes. Em 1961, com a promulgação da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 4024 de 20 de dezembro de
1961) fica estabelecida a completa equivalência entre os cursos técnicos e o
curso secundário para efeitos de ingresso nos cursos superiores. As lutas
políticas em torno da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
estão na origem das Leis de Equivalência que progressivamente equiparam os
estudos acadêmicos aos profissionais em termos de prosseguimento de estudos no
nível superior.
A Lei n. 5.692/71 reformou o ensino primário e secundário.
Estabeleceu compulsoriamente a profissionalização como finalidade única para o
ensino de 2º grau. Em decorrência desta lei, a ‘educação profissional’ deixou
de estar limitada a estabelecimentos especializados. Segundo Cunha (1998), com
a implantação dessa lei, as escolas técnicas viram-se procuradas por levas de
estudantes que pouco ou nenhum interesse tinham por seus cursos profissionais.
Paradoxalmente, a profissionalização compulsória do ensino de 2o grau trouxe
como efeito o reforço da função propedêutica das escolas técnicas, que se
transformaram numa alternativa de ensino público para estudantes que apenas
pretendiam se preparar para o vestibular. Onze anos depois, a Lei 7.044/ 82
retirou a obrigatoriedade da habilitação profissional no ensino de 2o grau. Em
decorrência, a ‘educação profissional’ voltou a ficar restrita aos
estabelecimentos especializados.
A Lei n. 9.394/96, atual Lei de Diretrizes e Bases (LDB),
configura a identidade do ensino médio como uma etapa de consolidação da
educação básica e dispõe que “a educação profissional (...) conduz ao
permanente desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva”. Pela primeira
vez, consta em uma lei geral da educação brasileira um capítulo específico
sobre ‘educação profissional’. Em 17 de abril de 1997, o governo federal baixou
o Decreto n. 2.208, regulamentando os dispositivos da LDB referentes à ‘educação
profissional’, definindo seus objetivos e níveis, além de estabelecer
orientações para a formulação dos currículos dos cursos técnicos. O decreto
especifica três níveis de ‘educação profissional’: o básico, o técnico e o
tecnológico. A reforma dos anos 90 proíbe o desenvolvimento do ensino técnico
integrado ao ensino médio e define a ‘educação profissional’ como
necessariamente paralela e complementar à educação básica.
Na proibição do desenvolvimento do ensino técnico integrado
ao ensino médio evidencia-se de forma exemplar as principais características da
reforma da ‘educação profissional’ dos anos 90, no Brasil: o retorno formal ao
dualismo escolar, na medida em que se aparta a ‘educação profissional’ da
educação regular; na concepção de educação que embasa essa reforma – a ruptura
entre o pensar e o agir e o aligeiramento da educação profissional; a subsunção
da escola à cultura do mercado na formação do cidadão produtivo (Frigotto &
Ciavatta, 2006). Essa concepção de educação se insere no contexto de hegemonia
das políticas neoliberais e se afina à redução do papel do Estado. Retoma-se
com essa reforma uma visão dualista do sistema educacional, destinando-se
explicitamente a ‘educação profissional’ ao atendimento de uma determinada
classe social.
O Decreto n. 5.154, de julho de 2004, revogou o Decreto n.
2.208/97 e restituiu a possibilidade de articulação plena do ensino médio com a
‘educação profissional’, mediante a oferta de ensino técnico integrado ao
ensino médio. Manteve, entretanto, as alternativas anteriores que haviam sido
fortalecidas e ampliadas com o Decreto n. 2.208/97 e expressavam a histórica
dualidade estrutural da educação brasileira.
O debate em torno das
concepções que estavam presentes nas discussões que antecederam a Lei n. 9.394/96,
no final dos anos 80, é retomado nesse início do século XXI de maneira a
contemplar uma proposta de articulação entre ciência, cultura e trabalho, como
elementos norteadores de uma nova política educacional. A expansão e democratização da
‘educação profissional’ no Brasil assume grande relevância nesse contexto em
razão das expectativas de elaboração de uma nova política pública para o setor,
no âmbito de um projeto nacional de desenvolvimento.
Fonte: http://www.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/edupro.html
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