Autoestima na Abordagem Centrada na Pessoa de Carl Rogers: Fundações,
Reflexões e Perspectivas no Contexto Brasileiro
Resumo
A autoestima constitui um constructo
central no campo da psicologia contemporânea, ocupando posição de destaque em
discussões que envolvem saúde mental, desenvolvimento humano e qualidade das
relações sociais. Esse conceito, amplamente explorado em diversas abordagens
teóricas, recebe contornos próprios na Abordagem Centrada na Pessoa (ACP),
desenvolvida por Carl Rogers, na qual desponta como resultado da valorização
pessoal, autenticidade existencial, aceitação incondicional positiva e
experiência congruente do self. Este artigo aprofunda a compreensão da
autoestima sob a ótica rogeriana, dialogando com os principais aportes teóricos
internacionais e brasileiros, com ênfase em autores que investigaram as
interfaces entre autoestima, relações interpessoais e contexto sociocultural.
Também são discutidas as contribuições da ACP para os contextos clínico,
educacional e institucional no Brasil, visando colaborar para uma visão
holística e contextualizada do amadurecimento psicológico e do florescimento
humano.
Introdução
A autoestima é reconhecida como
variável fundamental no desenvolvimento psíquico do indivíduo, influenciando
desde os primeiros vínculos estabelecidos na infância até a maneira como
adultos se relacionam consigo mesmos e com o ambiente ao longo da vida (Branden,
2003; Rodrigues & Pich, 2004; Hutz, 2014). Definida usualmente como o valor
e respeito que o indivíduo atribui a si, suas raízes, funções e impactos
extrapolam o domínio da psicologia individual, abrangendo áreas
interdisciplinares como a saúde pública, a educação, o direito e a gestão
institucional.
No campo da psicologia humanista, Carl
Rogers inaugurou um novo paradigma de estudo da personalidade, centrado no
potencial desenvolvimentista do ser humano e na capacidade intrínseca de
autotransformação. A autoestima, nesse contexto, emerge não apenas como o
sentimento subjetivo de autovalor, mas como manifestação da congruência entre
as experiências internas, as vivências afetivas e a autoimagem, constituindo-se
num dos pilares do funcionamento psicológico saudável.
O objetivo deste artigo é apresentar
uma análise aprofundada do conceito de autoestima a partir da Abordagem
Centrada na Pessoa, articulando fundamentos teóricos, revisões da literatura
nacional e internacional e aplicações práticas no contexto brasileiro, com
destaque para a produção científica da ACP no país. Busca-se, assim, colaborar
para o avanço do conhecimento técnico-científico nessa temática, oferecendo
subsídios para pesquisadores, profissionais da saúde mental e educadores comprometidos
com o desenvolvimento integral do sujeito.
Referencial Teórico
1. Abordagem Centrada na Pessoa: Fundamentos Históricos e
Epistemológicos
A Abordagem Centrada na Pessoa,
concebida por Carl Ransom Rogers (1902-1987), representa uma das mais
influentes perspectivas dentro da psicologia humanista. Diferente das teorias
psicanalíticas e comportamentais, a ACP defende que o ser humano possui uma
tendência inata, denominada tendência atualizante, que o impele à realização de
seu potencial máximo, ao crescimento psicológico e à autonomia (ROGERS, 1951).
Para Rogers, todo o processo terapêutico
— e, por extrapolação, todo ambiente facilitador, seja ele educacional,
familiar ou organizacional — deve se organizar ao redor de três condições
básicas para promover a mudança construtiva e o desenvolvimento saudável: empatia,
autenticidade (congruência) e aceitação positiva incondicional.
Essas condições não excluem o sofrimento nem negam a presença de dificuldades,
mas fomentam um campo relacional onde a expressão genuína do self se torna
possível e encorajada.
2. Self, Autoestima e Congruência
O conceito de self é central à ACP,
referindo-se ao conjunto de percepções e valores que o indivíduo constrói sobre
si próprio, ao longo de sua existência, a partir das experiências vividas e das
interações com o meio. Conforme definido por Rogers (1959), o self é dinâmico,
sempre em processo de reinterpretação.
A autoestima, nesse sentido, resulta do
alinhamento entre o self-real e o self-ideal, ou seja, entre a experiência
imediata e a avaliação subjetiva de quem se é e de quem se gostaria de ser.
Quanto menor a discrepância entre esses dois pólos, maior tende a ser a
autoestima, pois o sujeito reconhece, valida e valoriza sua própria existência,
mesmo diante de imperfeições e limitações.
De modo oposto, ambientes marcados por
condições de valorização — ou seja, por aceitação condicional, críticas
recorrentes ou ausência de afeto — contribuem para o surgimento de
incongruências internas, gerando sentimentos de inadequação, insegurança e
baixa autoestima. Isso explica por que comportamentos narcisistas ou arrogantes,
muitas vezes, estão vinculados a um self fragilizado e autoestima soterrada,
funcionando como tentativas de compensação do vazio existencial (Rogers, 1961;
Branden, 2003).
3. O Papel do Ambiente Facilitador
A construção da autoestima é fortemente
influenciada pelos ambientes familiares, escolares e sociais nos quais o
indivíduo está inserido. De acordo com Rodrigues & Pich (2004), ambientes
facilitadores são aqueles que, à luz da ACP, oferecem espaço para o diálogo,
para a expressão autêntica das emoções e para o respeito às diferenças
individuais, promovendo o sentimento de pertencimento, o reconhecimento do
valor pessoal e a autovalorização.
Rogers (1961) enfatiza que as relações
pautadas pelos três pilares rogerianos favorecem o desenvolvimento de
autoestima sólida e resiliente, com indivíduos mais propensos à aceitação de
críticas construtivas, à flexibilidade diante das adversidades e ao exercício
da empatia para com o outro. Esse modelo é extremamente relevante para o
fortalecimento de vínculos familiares, a construção de laços escolares
saudáveis e o estímulo ao protagonismo em espaços institucionais.
Discussão: Aproximações entre o Referencial Internacional e a Literatura
Brasileira
A Psicologia Humanista e o Reconhecimento das Singularidades
Na literatura internacional, a
autoestima tem sido objeto de amplo interesse, com destaque para autores como
Nathaniel Branden (2003), que aponta a relação entre autoestima elevada e
desempenho acadêmico, saúde psicológica e realização profissional. Tal
perspectiva dialoga com a ACP, para a qual a autovalorização genuína é um recurso
psicológico essencial ao enfrentamento dos desafios da vida adulta, ao
exercício da autonomia e ao estabelecimento de relações interpessoais
saudáveis.
No Brasil, psicólogos e educadores
autores como Rodrigues & Pich (2004), Souza (2015), Leal (2015) e Hutz
(2014) evidenciam que o contexto sociocultural nacional, marcado por
desigualdade, preconceitos e instabilidades históricas, demanda atenção
constante à promoção de autoestima, sobretudo junto a populações
vulnerabilizadas. É imprescindível, nessas circunstâncias, pensar a autoestima
para além do viés individualista, reconhecendo as nuances culturais, raciais,
de gênero e classe que atravessam a construção do self brasileiro.
Interseções com Saúde Mental, Educação e Instituições
No contexto da saúde mental, inúmeros
estudos reportam que níveis adequados de autoestima atuam como fatores de
proteção frente a transtornos ansiosos, depressivos, alimentares, estados de
estresse pós-traumático e risco suicida (Hutz, 2014; Branden, 2003). Em sentido
oposto, a baixa autoestima pode funcionar como gatilho ou perpetuador de
sintomas clínicos, afetando o desempenho social, acadêmico e laboral.
No âmbito educacional, a ACP contribui
com práticas pedagógicas inclusivas, orientadas ao respeito mútuo, à liberdade
de expressão e ao incentivo à autonomia dos aprendizes. Segundo Souza (2015), o
fortalecimento da autoestima é condição para o desenvolvimento pleno das
potencialidades dos alunos, impactando positivamente o rendimento escolar, a
criatividade e a capacidade de lidar com frustrações, conflitos e desafios
inerentes ao processo de aprendizagem.
Em instituições de cuidados, como
hospitais, lares de acolhimento e comunidades terapêuticas, a implantação de
práticas rogerianas corroboram para a ressignificação da experiência do
adoecimento, da velhice ou da dependência química, oferecendo suporte emocional
e restaurando dimensões identitárias frequentemente negligenciadas em modelos
institucionais tradicionais (Rodrigues & Pich, 2004).
Autoestima Além do Individualismo: Aspectos Coletivos e Políticos
Um dos pontos de inovação na literatura
brasileira centrada na pessoa é a ampliação do conceito de autoestima enquanto
fenômeno relacional e coletivo. Tal perspectiva é fundamental no contexto de um
país marcado pela diversidade étnico-cultural, pelas desigualdades sociais e
pela pluralidade identitária (Leal, 2015).
Diante disso, a promoção da autoestima
não pode ser vista apenas como responsabilidade do indivíduo, mas requer
políticas públicas e práticas institucionais que favoreçam ambientes
inclusivos, igualdade de oportunidades, prevenção de discriminações e promoção
do respeito às singularidades. Isso implica, em termos práticos, desde o
combate ao bullying nas escolas à criação de espaços de escuta e acolhimento
nos serviços públicos de saúde, corroborando para o desenvolvimento integral do
sujeito e da coletividade.
Aplicações Práticas: Psicoterapia, Educação e Contextos Institucionais
1. Psicoterapia Centrada na Pessoa
No setting clínico, o trabalho com
autoestima baseia-se na oferta de um clima de aceitação, empatia e congruência
por parte do terapeuta, possibilitando ao cliente explorar com segurança suas
experiências emocionais, redefinir crenças negativas e desenvolver um sentido
renovado de valor pessoal (Rogers, 1961).
Casos clínicos relatados por estudiosos
da ACP no Brasil, como Silva & Moura (2017), demonstram que clientes
apresentando quadros de insegurança, autodepreciação ou comportamentos
autossabotadores podem se beneficiar significativamente deste modelo. Ao longo
do processo terapêutico, é frequente observar o fortalecimento da autoestima,
que se manifesta na ampliação da assertividade, na capacidade de delimitar
fronteiras saudáveis e na disposição para assumir novos desafios pessoais e
profissionais.
2. Ambientes Escolares e Práticas Pedagógicas
No ambiente educacional, professores
que atuam de acordo com os referenciais da ACP contribuem significativamente
para a construção da autoestima dos alunos. O estímulo à autonomia, ao
pensamento crítico e à expressão livre das emoções permite o surgimento de
sujeitos mais seguros, participativos e protagonistas de seu próprio processo
de aprendizagem (Souza, 2015; Rodrigues & Pich, 2004).
Pesquisas apontam que ambientes
escolares facilitadores ampliam não apenas o rendimento escolar, mas também a
capacidade de resolução de conflitos, o fortalecimento do sentimento de
pertencimento ao coletivo escolar e a prevenção a situações de violência,
bullying e evasão. Nesse sentido, a autoestima é tanto um objetivo quanto uma
ferramenta do processo pedagógico.
3. Instituições de Saúde, Assistência e Intervenção Social
Em hospitais, comunidades terapêuticas
e centros de acolhimento, o fortalecimento da autoestima está vinculado à
qualidade das relações estabelecidas entre profissionais e usuários. Práticas
que valorizam a escuta, a transparência comunicacional e o respeito às
vulnerabilidades individuais tornam-se centrais na revalorização dos sujeitos
em situação de sofrimento psíquico, físico ou social.
No contexto da assistência social,
estratégias inspiradas na ACP vêm sendo utilizadas para apoiar pessoas em
situação de rua, dependentes químicos, vítimas de violência doméstica ou
minorias discriminadas, favorecendo o resgate da autoestima, da dignidade e da
capacidade de reinserção social (Leal, 2015; Silva & Moura, 2017).
Críticas e Limitações do Conceito de Autoestima na ACP
Embora a ACP seja reconhecida pela
riqueza de seu aparato conceitual para promoção da autoestima, é importante
salientar limitações apontadas por críticos contemporâneos e autores de outras
abordagens. Algumas dessas questões incluem o risco de supervalorizar a
experiência subjetiva, minimizar fatores estruturais que impactam o self (como
desigualdade social, racismo, opressão de gênero), ou ainda de desconsiderar a
complexidade dos processos inconscientes descritos pela psicanálise.
Autores como Leal (2015) e Safra (2012)
atentam para a necessidade de integrar a perspectiva rogeriana com aportes de
outras tradições teóricas, além de adaptar suas práticas à realidade
sociocultural brasileira, com ênfase em práticas comunitárias, grupais e
interventivas que considerem as múltiplas faces da exclusão, estigmatização e
preconceito.
Considerações Finais
O constructo da autoestima,
fundamentado na Abordagem Centrada na Pessoa, revela-se central para a promoção
da saúde mental, do equilíbrio emocional e da realização existencial, com
impactos evidentes nas esferas individual, coletiva e institucional. A valorização
pessoal, mediada pela congruência, autenticidade e aceitação incondicional, é o
eixo articulador do desenvolvimento humano pleno, superando visões
reducionistas ou individualistas.
No contexto brasileiro, o diálogo entre
a ACP e a produção teórica local mostra-se frutífero e inovador, especialmente
à medida em que amplia o escopo conceitual para incorporar as dimensões
coletivas, políticas e contextuais da autoestima. Assim, profissionais,
pesquisadores e instituições encontram no legado de Carl Rogers e seus
seguidores brasileiros um aporte robusto para o enfrentamento dos desafios
contemporâneos e para a promoção do florescimento humano em sua totalidade.
Deste modo, fomentar ambientes
facilitadores, apostar em práticas institucionais inclusivas e valorizar o
autoconhecimento constituem caminhos essenciais para a consolidação de uma
sociedade mais saudável, empática e democrática.
Referências
- BRANDEN, N. (2003). Os
seis pilares da autoestima. Rio de Janeiro: Ediouro.
- HUTZ, C. S. (2014). Psicologia
positiva e autoestima: uma visão contemporânea. Porto Alegre: Artmed.
- LEAL, B. de S. (2015). Autoestima
e práticas políticas: desafios na realidade social brasileira.
Psicologia em Estudo, 20(2), 335-344.
- ROGERS, C. R. (1951). Client-Centered
Therapy: Its Current Practice, Implications and Theory. Boston:
Houghton Mifflin.
- ROGERS, C. R. (1959). A
theory of therapy, personality, and interpersonal relationships, as
developed in the client-centered framework. In: Koch, S. (Ed.).
Psychology: A study of a science. New York: McGraw-Hill.
- ROGERS, C. R. (1961). On
Becoming a Person: A Therapist’s View of Psychotherapy. Boston:
Houghton Mifflin.
- RODRIGUES, M. C. C. de S.,
& PICH, S. (2004). A Abordagem Centrada na Pessoa e sua
contribuição para a promoção da autoestima. Revista Brasileira de
Orientação Profissional, 5(1), 29-39.
- SAFRA, G. (2012). Identidade
e autoestima sob o prisma das relações sociais. Revista Psicologia
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- SILVA, R. F., & MOURA,
L. A. (2017). Psicoterapia centrada na pessoa e fortalecimento da
autoestima: relato de casos brasileiros. Pensando Famílias, 21(2),
195-213.
- SOUZA, H. P. de. (2015). Autoestima,
vulnerabilidade e resiliência: reflexões na clínica centrada na pessoa.
Psicologia e Saúde, 7(2), 45-54.